quarta-feira, 30 de maio de 2018

Prisma Imagético

Somos sombras constantes. Ao alvorecer somos somente figuras que se movem lentamente. Os outros nos consideram inferiores, e nós nos vemos como evoluídos. Essa é uma visão moderna, doméstica, de seres que lutam pra não reconhecer fraquezas, defeitos. Estamos constantemente batalhando para nos mantermos sérios, certos, firmes, seguros e sossegados. Até a ilusão ser nossa vida, preenchida por incertezas, imprudente, doente, inconsequente. Humano.

Somos luz vibrante. Ao anoitecer nos movemos com a velocidade do vento. Os demais nos consideram uma ameaça, e nós nos vemos como libertos. Essa é uma visão antiga, perene, de seres que relutam para se conhecer, abraçar, envolver. Inútil querer esconder a natureza que nos torna fascínio, misteriosos, magia, poderosos e essência. A realidade é nossa vida, cheia de raízes, culturas, línguas, sabores e sentidos. Encanto.

Somos números e constantes. Sob infinitesimais limites nós agimos. Os diferentes de nós nos classificam, enumeram, rotulam e organizam, e nós nos vemos como simples uns e zeros. Essa é uma visão fática, matemática, de fatores que usamos para reconhecer e representar dados, feitos. Não há cansaço, e sabemos que somos os que nos fizeram ser, conhecer, ter, gerir. Não somos vida, somente cabos e fios, placas e moldes, peças e ferramentas. Razão.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Em Verdes Campos Dormirei

Nos encontramos na floresta. Seus olhos estavam como tochas, vermelhos. Sua voz estranha, e suas palavras embaralhadas, eu até me assustei. Eu estava apreensivo pela demora, e odiei aqueles SMS com ameaças infantis. Será que eu já não havia sido humilhado o suficiente? Neste momento sua família deve me odiar! Mas eu estava ali, não? Vamos conversar.

Cheguei da padaria sem a sua torrada favorita. Eu sei que isso vai te irritar mais ainda, mas continuo acreditando que não tenho culpa dos seus hormônios. Eu poderia dar dezenas de exemplos, mas nem a ciência me ampararia. Passo pela cozinha, deixo as compras e corro pra que você não me veja. Estou exposto, e daqui a 20 minutos eu tenho que estar a caminho do trabalho. Acelero pra deixar tudo organizado na mesa. O café está muito perfumado, vocẽ vai gostar. E do chocolate.

O médico me avisa que estou com câncer. A mesa dele parece tão perfeitamente arrumada. A moldura do que parece ser um diploma está tão brilhante. Ele fala que eu devo me preocupar, que está num estágio avançado, e tenta me persuadir a começar um tratamento. Eu escuto o som do solado do sapato caro dele batendo no chão, ele está mais nervoso do que eu, aparentemente. Ele gesticula de uma forma elegante, talvez tentando se conter ao contar essa tenra notícia. Afinal de contas eu sou filho do amigo de infância dele, um infortúnio.

Aqui é frio. Aqui é escuro. O ar é úmido. Essa sensação de estar sendo observado, constante frio na barriga. Eu não sei o que você quer de mim, só me entrego, e elevo meu pensamento pra longe do mau querer. Essas flores em minha mão, quase esqueço o que elas fazem ali. Um espirro, pólen. Estou cansado, mas focado. E você está linda. Você está bizarramente linda, com esses olhos vermelhos. Mas é bem melhor calada. Até que tudo se resolva.

Chego no trabalho, meus colegas estão reunidos em um semi círculo ao redor da tevê do escritório do gerente. Alguns deles estão com uma expressão grave, outros gesticulam, mas a maioria só assiste, como se estivessem esperando sair a próxima combinação letra e número de um bingo. Um burburinho, e todos se voltam para mim quando eu passo imediatamente na frente da porta da sala do gerente. São zumbis? Eles me olharam, ávidos, e vieram todos em minha direção, apontando e chamando. Eu saio dali, um susto repentino, eles abrem a porta da gerência quase se estapeando, ombro a ombro. Eu me afasto. Eles me chamam, "espere" eles dizem. Eu acabo tropeçando e meu gerente me segura pelo braço. Ele está com um rosto assustado.

Tenho 13 anos. Aquela floresta me dá medo, mesmo com toda aquela luz, e o clima quente e abafado. Eu não confio nas suas palavras, nem nas coisas que você está falando. Eu não quero acreditar em você. Quero ir embora, ver minha mãe. Sinto pena de você, mas tenho medo de dizer. Tenho medo de você, essa é a verdade. Eu chuto as folhas, e você não para de falar. Vou levar uma bronca por estar ali, aquele tempo todo. Você gagueja, eu não entendo uma só palavra. Eu sinto que devo correr, mas o seu cabelo...

Nunca mais te verei. Não chore. Não quero que você chore. Eu te amo, você sabe. Eu estou em paz. Não, eu não quero que você se lamente. Não se lamente, meu amor. Não sinto dor, estou tranquilo, em paz. Acredite. Só que a gente não vai mais se ver, e isso eu devo te dizer. E não é triste, desde que eu esteja em paz, não há incômodo algum. Não chore assim. Calma. Me desculpe ter esquecido as torradas. Perdoe a pressa, eu estava atrasado. Nunca mais estarei atrasado, olha o lado bom. Sem reclamação.

Estou em paz!
Cheers!