domingo, 5 de maio de 2019

De Jorad e Nihadir

Jorad e Nihadir iniciaram sua viagem pelo país em sua missão sagrada, extirpando o mal de Nucalen pouco a pouco, vila a vila, e reanimando a fé nos deuses entre os doradis e os estrangeiros, sobretudo os maladins de Ecésia. Vivendo de doações, hospedando-se sob convite dos mais humildes e carregando somente o que eles mesmos podiam carregar, e todos os instrumentos da fé no cavalo Nahritala, conseguiam cobrir grandes regiões, e poucas vezes se distanciavam um do outro. Nihadir já praticava o arco e flecha, e quando encontrava com seu pai, sempre mostrava sua habilidade crescente. Jorad gostava de ouvir as histórias dos mais antigos, e vivia cercado de crianças, produzindo mágicas para entretê-las. Em alguns anos eles já eram bem conhecidos em todo o sul do país.

Em sua caverna de carvão e sal, Nucalen planejava suas malícias, reunindo os homens maus, e criando seus demônios lentamente. Em sua ira, durante sua derrota nos Campos de Himlal Kala, ele havia deixado cair seu ecso valioso, e agora estava sem poder fundir Barala e Cezhalnadir, e sua coroa também havia sido partida. Fraco e sem armas, ele só conseguia saber por meio de espiões todos os feitos de Jorad e Nihadir. Sua poderosa magia agora dependia dos homens, e isso o irritava. Sacrifícios em Tulan Fil voltaram a aterrorizar os Vales do Arroz, com dezenas de sequestros, e demônios gigantes vagando e destruindo. Voltavam-se para o norte cada vez mais, fugindo da missão sagrada dos reminiscentes da Kvala ara Kala.

Quando chegaram na capital do território de Puunij, Jorad e Nihadir reuniram-se aos reminiscentes. Os velhos guerreiros estavam cansados, e já desejavam largar as armas, se pudessem. Outros, com limitações físicas, já desejavam doar suas relíquias sagradas para os principais templos. Somente a fé os mantiveram por tanto tempo em pé, em missão. O mais antigo de todos, Dalaran, estava cego e só conseguia sobreviver das doações pelas aulas de línguas aos mais jovens. Ele, que havia empunhado a espada da própria deusa Kalis, agora não suportava sequer o peso dos livros. Diante dessa situação Jorad reuniu uma assembleia junto aos anciões da capital para deliberar sobre os novos iniciados na fé, aqueles que iriam suceder os reminiscentes. E assim foi feito, e em três dias dezenas de jovens se ofereceram. Mas eles precisavam de milhares, e assim Jorad e Nihadir deixaram a missão sagrada para se tornarem Mestres, apesar da pouca idade. Começaram uma nova viagem pelo país, em busca de reconstruir todos os templos e suas escolas de sacerdotes.

E antes da data do primeiro Unala daquele ano, a arvore que o deus Udir havia plantado em Tulan Fil brotou, e aquilo preocupou muito Nucalen e seus demônios. A necessidade de reunir um exército maior que o anterior urgia em seu pensamento, e logo ele procurou novamente seu maior aliado no estrangeiro, o demônio Lemetit.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Está tudo bem

O topo do prédio estava coberto por uma poeira cinza, esponjosa, fétida. Cada passo deixou uma impressão do tênis de Débora no chão que levantava uma pequena nuvem de poeira. Mais a frente ela viu bitucas de cigarros, e embalagens de chicletes, provavelmente dos funcionários do prédio que se aventuravam no topo. Ela tropeçou numa fiação exposta, mas coberta pela densa poeira. Estava incômodo respirar, e a luz ali era ineficaz, produzindo sombras diversas.

Com cuidado ela avançou, evitando tropeçar. Teias de aranha e suas armadilhas geométricas esbarravam conforme ela seguia. Um trecho onde realmente a poeira esponjosa havia se aglutinado pareceu ser um obstáculo, e Débora resolveu dar a volta, mas acabou caminhando para uma parte onde as caixas escondiam a luz. Vacilando ela tropeçou e se apoiou em caixas empoeiradas, e dentro dessas caixas haviam livros úmidos. Ela parou, enxugou nervosamente a mão na calça e levantou o joelho, afim de sair daquele caminho. Seguiu rumo contrário, e forçou passagem pela poeira esponjosa aglutinada. Quase nenhuma resistência, mas toda aquela poeira suspensa no ar já irritava seu nariz.

Com algum esforço para não se apoiar em outras caixas ela caminhou na direção da única lâmpada do recinto. Já era possível ver o piso, mas não seu tênis. Ali ela parou, visualizou tudo que pôde, e calculou o caminho. Montes e montes de poeira esponjosa pareciam varridas em todas as direções, como grandes nuvens de tempestade, aglutinando fios, pelos, sujeira. Não havia um caminho lógico naquele momento, então ela arrastou o pé na direção que exercesse menor resistência.

Tropeçou uma, duas vezes, enrolou os pés no que pareciam arames soltos, e, entrincheirada, com nuvens pela cintura, ela resolveu usar as mãos. Buscava obstáculos, como uma criança vendada em busca dos amigos nas festas de aniversário de sua infância. Esbarrou em caixas de papelão, de madeira, derrubou cabos do que pareciam ser de vassouras, e imergiu na poeira. Aquele túnel cinza, com lapsos de luz que entremeavam a esponja fétida, como relâmpagos numa tempestade, e logo toda sorte de bagulhos caíram sobre sua cabeça. Por diversas vezes ela desviou seu curso, cega, desorientada e incapaz. Tateou caixas, e o desespero tomou conta dela. Com um singular senso de direção, empurrou todos os obstáculos possíveis com mãos, pernas e corpo, e a poeira já lhe ardia nos olhos e nas narinas. Afogando-se no ar pesado, ela nadou e murmurou, sozinha naquelas nuvens de poeira esponjosa, resistindo a tudo, até que um sopro de vida tocou seu rosto. Era a porta para fora.

Avançou porta a fora e se livrou daquelas mãos que fumegavam poeira. Uma sensação de liberdade, seguida de frio, e brisa. O piso estava molhado da chuva passada. Ela olhou para si, e estava coberta de poeira, dos pés a cabeça. Limpou o rosto com a parte de dentro da camisa, tossiu e deu uma olhada ao redor. Chaminés com fumaças brancas, ferros retorcidos do que já foi um banner e alguns fios expostos. Com um suspiro ela se dirigiu à beirada e contemplou os prédios maiores ao redor. Com suas mãos sujas ela segurou o parapeito e deu uma olhada para baixo. Viu o tráfego noturno daquela rua tão conhecida, acompanhou a sequência verde-amarelo-vermelho do semáforo e sorriu. Estava verde pra ela.

Débora tirou do bolso um papel amassado, leu tranquilamente e sorriu. Dobrou em três pedaços e juntou, com as duas mãos sujas, próximo do coração. Ficou alguns segundos pensativa, desprezando a fina chuva que caía. Quando saiu de seu transe, olhou para o chão e encontrou e pegou uma pedra. Avaliou o peso da pedra, seu formato e cor, e parecendo satisfeita, abaixou-se, depositou o papel no chão, pôs a pedra em cima e levantou.

Tirou os olhos da pedra, virou-se para o parapeito, puxou o corpo para cima e passou as pernas para fora, primeiro a esquerda, depois a direita. Aprumou seus pés, segurando-se com os braços para trás, soprou o cabelo do rosto e se jogou.

Cheers!

domingo, 17 de março de 2019

Entendimento

Sim, concordei que essa era a melhor decisão. Embora as dúvidas, sabíamos que tínhamos que ter um consenso. O melhor para duas pessoas em conflito. Em uma busca tremenda que abalava todos ao nosso redor. Pensando nisso, eu busquei em minha mente todos os conflitos, as discussões, as diferenças. Não posso fazer tantas concessões. Mesmo na atual situação em que eu estou vivendo. Um convidado, talvez.

Não acredito que ele acha que eu estou errada. Expliquei tudo pra ele. O tanto que eu me entreguei, quantas coisas eu desisti pra estar ao lado dele. Não acredito que ele consiga simplificar as coisas assim. Por acaso eu sou a vilã da história? Como posso ser menos que uma mera espectadora dos fatos, ou somente passiva do que ele escolhe por mim? Ele acha que estamos nos equalizando com decisões? Não creio. Quero minha vida de volta.

Acho que o pior já passou. Não vejo tantos problemas, e estou tão tranquilo com nosso consenso. Finalmente eu posso olhar pra ela e pensar que estamos em equilíbrio. Talvez agora nosso relacionamento vá progredir. Dinheiro nunca foi problema. Ela sempre foi desapegada. Algo raro. E eu preservei isso, não me dei a luxos, ao supérfluo. Não estamos quites, ainda, mas buscando a solução para problemas infantis que nos levam pra baixo.

Eu quero acreditar nele. Uma parte de mim quer condenar a convalescença que ele tem com nossas brigas, mas outra parte imagina e aceita que é, no mínimo, mais racional como eu nunca fui. Ele é racional. Eu sou racional, mas coração demais. Queria acreditar, ele não tem todas as soluções. Eu sou tão horrível assim? Querer demais é algum pecado? Ele não consegue entender. Eu sei que não. Estamos fazendo um acordo falho. Dei minha palavra em vão. Estamos na mesma, comigo sendo a vilã. Mesmo ele sendo o racional.

Cheers!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Na velha choupana

Em leve espanto desperto de um pesadelo. Uma penumbra cobre meus pensamentos, e lá fora há uma névoa densa. Ou serão meus olhos? Resolvo fechar a janela e voltar a dormir. Mas do que se tratava meu pesadelo. Não consigo mais lembrar. Essa sensação de curiosidade pelo bizarro, já fui muito criticado por isso. Dou uma boa olhada no quarto, quanta bagunça, pareço uma criança de 7 anos. Mas sem brinquedos. A oportunidade de estar desperto me faz ficar pensando nas coisas que ainda tenho que fazer antes de ir. Essa porta é tão bonita!

Eu nunca havia prestado atenção no frio que é esse piso a noite. Um frio incomum. Meus pés gelam, e eu me sento na cadeira da escrivaninha. Levanto os pés, mas que tolice, o frio estará lá. A doce ilusão de negar a realidade. Respiro fundo, penso no que tenho a fazer, mas só consigo pensar na minha curiosidade pelo pesadelo, sem sucesso. Percebo que meus lençóis estão num tom azul marinho, e as folhas produzem aqueles sonolentos sons de quando o vento passa devagar. Creio que já esteja na hora de esquecer, pesadelo e planos, e voltar a dormir.

Embrulhado, pálpebras fechadas, respiração suave, e a mente trabalhando. Tenho a sensação que a cama me engole, e me cospe de volta. A insônia? Pareço um aluno de cálculo em busca da resolução de um problema. Viro meu corpo para o outro lado, pálpebras fechadas, e mais cálculos e cálculos. Nenhuma resposta. Abro os olhos e observo pela enésima vez o telhado, e meus ouvidos ainda ouvem o farfalhar das folhas em meio a um vento que se avoluma lá fora. Penso no chão frio. O frio me atrae, mas continuo na cama, embrulhado. Os pensamentos cansados se repetem, e se revezam. O que será que eu estava sonhando no meu pesadelo? Sangria do tempo maldita! Me faço dormir, sem dormir. Essa porta é tão bonita!

Cheers!