terça-feira, 13 de março de 2018

Naqueles dias

Charles franzia a testa, com seu óculos de leitura na ponta do nariz, cabeça erguida. Aquelas malditas letras, tão pequenas. Se não fosse sua atenção à leitura ele não perceberia que Ana estava esbravejando e esperneando na cama, mas ela realmente se esforçava para ser percebida. Ela se arma com um travesseiro, ele só olha por cima dos ombros. Ela ameaça. Ele dobra o papel, resignado, com um sorrisinho besta. Fica de pé, estica a coluna calmamente, enquanto ouve Ana incontrolável gritar xingamentos. Ele esboça falar algo, e isso a deixa com mais furor, mas sua cabeça pende, novamente resignado.

Aquele barulho conta-gotas do vazamento da pia do banheiro lhe chama atenção. Ele precisa divagar um pouco para escapar da fúria de Ana. Alguma coisa para ocupar seu dia de folga. Quando projeta seu corpo na direção da porta, um travesseiro acerta sua nuca. Ele fecha os olhos. Abre os olhos. Fecha os olhos, imagina ele mesmo consertando o vazamento. Onde estarão as ferramentas? Sem esboçar nenhuma reação à Ana, ele sai do quarto, sob protestos. Ele deixa a porta aberta, afim de ouvir aquele show escandaloso.


No banheiro ele para bem em frente a pia. Sua disposição é mínima. Finalmente aquela sensação de sair correndo diminui. Apesar dos gritos, ele apura os ouvidos, põe a mão embaixo da pia e com o tato identifica a origem do vazamento. Uma conexão que está frouxa. Ele firma os dedos e torce. Sua imaginação o remete às máquinas das fábricas onde ele estagiou quando jovem. Não haveria nenhuma máquina mais perfeita para realizar aquela atividade que ele executava tão bem: agachar-se em frente a uma pia, esticar o braço para trás dela, sentir a conexão frouxa e a água que por ali escorre, moderar a pressão dos dedos com o pulso virado para cima, e torcer com um torque preciso até estancar o vazamento.


Aquela sensação de felicidade durou alguns segundos. Ana estava de pé, em frente a porta do banheiro, calcinha e sutiã, e gesticulava muito, aos berros. Charles a observa, sentado no chão do banheiro. Ele admira o corpo dela por milésimos, logo em seguida voltando sua atenção pro chão, numa atitude passiva. Ela vai até a cama e volta, gesticula, faz diversas caretas, vai até a cama e volta, bufa diversas vezes. E Charles ali, sentado no chão, com o corpo inerte, como uma marionete sem o manipulador.


Num dado momento Ana para, e silencia. Ela mergulha seu olhar naquele homem franzino, sentado no chão do banheiro. Respira fundo algumas vezes. Não esboça um movimento. Uma sensação de medo toma conta de Charles. Ele pensa que ela pode reagir violentamente. Sente uma vontade de “se abrigar” dentro do box do banheiro, com toda sua covardia. Ele está acuado. Alguns segundos de expectativa. Ana finalmente se move. Ele percebe que ela está olhando para o espelho, uma feição triste lhe abate. Charles percebe que a ira se foi, mas não tem coragem de levantar, ou falar alguma coisa. Ela somente toca em seu rosto, marcado por grandes olheiras. Finalmente ela sai dali, e parece afundar na cama.


Charles levanta devagar, incrédulo. Apoia-se nas paredes, pernas bambas, um cansaço repentino. Toda aquela situação lhe cansava. Sua cabeça começa a doer, ele se sente incapacitado, esgotado, consumido, explorado. Dá uns passos e já está de frente a cama. Ana está lá, jogada, espalhada, igualmente cansada, choramingando. Ele pensa que o pior já passou, e se atreve a ajoelhar-se na cama. Ela não reage. Ele arruma os joelhos unidos e tomba na cama, exausto. Um estranho silêncio toma conta do quarto. É um sábado, e uma leve chuva adormece os dois. Paz.