domingo, 13 de outubro de 2013

Iniciação ao delírio

Acordado. Estou deitado. Gosto ácido na boca. Uma agulha ao lado. Ampolas. Onde estou? Paredes amarelo abóbora, sinais de umidade na tinta. O teto está repleto de sinais, desenhos macabros. No outro lado de mim está um corpo seminu de uma mulher. Folhas de jornais espalhados no chão. Um cheiro de álcool no ar, misturado com cheiro de gordura e fedor da sujeira do lugar. Acordo plenamente. Onde estou? O que estou fazendo ali? Olho melhor o lugar, e aquilo me dá nojo. Eu olho para as minhas mãos e não acredito no que vejo. Ressecadas, amarelas, sujas, fedidas e tatuadas. Tatuadas? Olho para meu corpo e novamente eu não acredito no que vejo. É surreal. Meu corpo todo está sujo, fedido e tatuado. Percebo que é uma tatuagem recente, que ainda está sarando. Mas quando eu fiz isso em meu corpo?

Os desenhos das tatuagens são do mesmo tipo de desenho macabro do teto. Símbolos, números, palavras em uma língua que não compreendo. Começo a ficar com medo. Aquilo tudo é muito estranho. Começo a ficar tonto, o mundo começa a chiar. A vida começa a chiar em meus ouvidos. Então eu ouço uma voz suave. Ela diz "dorme". Eu durmo.

Peso, peso. Medida, meu corpo. Balança, medida. Ouro, álcool. Espelho, gato. Será que estou sonhando. Não sei se estou acordado. O que eu estou sentindo? Estou com medo. Peso, peso. Balança, ouro. Gato. Olhos felinos. Estou acordando, ou ainda sonhando. É um sonho? Mundo sem cheiro. Nada e tudo. Desenhos macabros. Medo, peso. Meu corpo, álcool. Medida, nada. Estou com medo. Muito medo.

Desperto. Estou deitado. Boca seca, lábios secos. Uma ave negra voa acima de mim e abaixo de um céu cor de abóbora. Tudo fede. Olho instantaneamente para as minhas mãos. Elas estão tatuadas, desenhos macabros. Olho ao meu redor. Um lixão. Entardecer, e o sol se pondo parece levar as nuvens negras com ele, num contraste com o lixo. Tudo está laranja e fedido. Tento me levantar, mas eu afundo no lixo. Minhas pernas estão leves, não as sinto. O lixo me segura, aqueles restos inúteis da vida útil de alguma residência. Eu afundo mais. Tento lutar para levantar. Minhas pernas respondem com preguiça. Estou ficando sem ar. Sacos e mais sacos de lixo começam a me cobrir. Estou me afogando. Estou com medo. Estou lutando. Estou somente querendo viver, levantar, voar com a ave negra. Carniça e imundície. Fedor insuportável. Não vejo mais minhas mãos, nem meu corpo. Estou afundando. Então eu ouço uma voz suave. Ela diz "dorme". Eu acordo.

Leito de hospital. Sete pessoas ao meu redor. Duas estão manuseando uma máquina. Meu peito queima. Minhas pernas formigam e se contorcem. Percebo que tem algo enfiado na minha boca que desce até a garganta. Aquilo queima. Dói. As pessoas são médicos e enfermeiros. Olho para minhas mãos e não há tatuagem, somente muitas feridas. Há agulhas injetadas em minhas veias. Tento falar, mas me afogo em minha saliva. Uma das pessoas tira o tubo que está em minha boca. Estou queimando por dentro. Tento gritar, mas o grito é abafado. Dedos abrem minhas pálpebras e jogam luzes incandescente para dentro da minha retina. Quero fechar os olhos. Não posso. A luz já cegou meu cérebro. Estou cego pela luz. Então, de repente, sinto uma flecha no peito. Meu coração para de bater. As pálpebras se fecham lentamente. Um sinal sonoro apita longamente.

Acordo. Leito de hospital. Boca seca, sensação estranha no rosto. Olho para mim e vejo que ainda estou com agulhas em minhas veias. Até consigo sentir o líquido fluindo dentro de mim. Estou com aquelas roupas de hospital, mas estou nu por baixo disso. Minha cabeça está pesada. Meus olhos estão secos, as pálpebras ferem cada vez que eu abro e fecho os olhos. Sinto um incômodo na barriga, um peso estranho. Verifico o que é, mas não é nada. É só a sensação. Ao meu lado estão outros, mas dormem. Todos estão com uma aparência péssima, e a maioria ligado a máquinas que os monitoram a todo instante. Batimentos, respiração. Eu mesmo estou a pouco mais que noventa. Incrível. Minha cabeça está pesada. Desejo um médico aqui. Abro a boca para chamar. "Enfermeira", eu chamo. Minha voz está tão fraca. Percebo que cada vez que inspiro, meu pulmão queima. Minha cabeça está muito pesada. Estou impaciente. "Enfermeira", "alguem", chamo novamente. Então um enfermeiro entra na sala, liga a luz e me fita. O rosto dele é branco, e está assustado. Ele vem depressa para o meu lado, e começa a falar. Mesmo assim eu não o escuto direito. Sua voz parece um grunhido, está distante, diferente. Ele gesticula freneticamente, e sua fisionomia é austera. Percebo que ele ainda fala, mas que gradualmente minha audição vai sendo restaurada. O rosto dele fica mais relaxado. O meu tambem. Eu tento falar alguma coisa, mas ele tapa minha boca com a mão dele. Ele faz sinal de "sim" com a cabeça, a mesma palavra que eu consigo ler dos lábios dele. Eu me acalmo. Respiro, queimando meus pulmões. Olho para ele. Então, quando eu volto a ouvir o chiado quase imperceptível do ar, ele me diz "dorme". Eu durmo.

Cheers!