quarta-feira, 10 de abril de 2019

Está tudo bem

O topo do prédio estava coberto por uma poeira cinza, esponjosa, fétida. Cada passo deixou uma impressão do tênis de Débora no chão que levantava uma pequena nuvem de poeira. Mais a frente ela viu bitucas de cigarros, e embalagens de chicletes, provavelmente dos funcionários do prédio que se aventuravam no topo. Ela tropeçou numa fiação exposta, mas coberta pela densa poeira. Estava incômodo respirar, e a luz ali era ineficaz, produzindo sombras diversas.

Com cuidado ela avançou, evitando tropeçar. Teias de aranha e suas armadilhas geométricas esbarravam conforme ela seguia. Um trecho onde realmente a poeira esponjosa havia se aglutinado pareceu ser um obstáculo, e Débora resolveu dar a volta, mas acabou caminhando para uma parte onde as caixas escondiam a luz. Vacilando ela tropeçou e se apoiou em caixas empoeiradas, e dentro dessas caixas haviam livros úmidos. Ela parou, enxugou nervosamente a mão na calça e levantou o joelho, afim de sair daquele caminho. Seguiu rumo contrário, e forçou passagem pela poeira esponjosa aglutinada. Quase nenhuma resistência, mas toda aquela poeira suspensa no ar já irritava seu nariz.

Com algum esforço para não se apoiar em outras caixas ela caminhou na direção da única lâmpada do recinto. Já era possível ver o piso, mas não seu tênis. Ali ela parou, visualizou tudo que pôde, e calculou o caminho. Montes e montes de poeira esponjosa pareciam varridas em todas as direções, como grandes nuvens de tempestade, aglutinando fios, pelos, sujeira. Não havia um caminho lógico naquele momento, então ela arrastou o pé na direção que exercesse menor resistência.

Tropeçou uma, duas vezes, enrolou os pés no que pareciam arames soltos, e, entrincheirada, com nuvens pela cintura, ela resolveu usar as mãos. Buscava obstáculos, como uma criança vendada em busca dos amigos nas festas de aniversário de sua infância. Esbarrou em caixas de papelão, de madeira, derrubou cabos do que pareciam ser de vassouras, e imergiu na poeira. Aquele túnel cinza, com lapsos de luz que entremeavam a esponja fétida, como relâmpagos numa tempestade, e logo toda sorte de bagulhos caíram sobre sua cabeça. Por diversas vezes ela desviou seu curso, cega, desorientada e incapaz. Tateou caixas, e o desespero tomou conta dela. Com um singular senso de direção, empurrou todos os obstáculos possíveis com mãos, pernas e corpo, e a poeira já lhe ardia nos olhos e nas narinas. Afogando-se no ar pesado, ela nadou e murmurou, sozinha naquelas nuvens de poeira esponjosa, resistindo a tudo, até que um sopro de vida tocou seu rosto. Era a porta para fora.

Avançou porta a fora e se livrou daquelas mãos que fumegavam poeira. Uma sensação de liberdade, seguida de frio, e brisa. O piso estava molhado da chuva passada. Ela olhou para si, e estava coberta de poeira, dos pés a cabeça. Limpou o rosto com a parte de dentro da camisa, tossiu e deu uma olhada ao redor. Chaminés com fumaças brancas, ferros retorcidos do que já foi um banner e alguns fios expostos. Com um suspiro ela se dirigiu à beirada e contemplou os prédios maiores ao redor. Com suas mãos sujas ela segurou o parapeito e deu uma olhada para baixo. Viu o tráfego noturno daquela rua tão conhecida, acompanhou a sequência verde-amarelo-vermelho do semáforo e sorriu. Estava verde pra ela.

Débora tirou do bolso um papel amassado, leu tranquilamente e sorriu. Dobrou em três pedaços e juntou, com as duas mãos sujas, próximo do coração. Ficou alguns segundos pensativa, desprezando a fina chuva que caía. Quando saiu de seu transe, olhou para o chão e encontrou e pegou uma pedra. Avaliou o peso da pedra, seu formato e cor, e parecendo satisfeita, abaixou-se, depositou o papel no chão, pôs a pedra em cima e levantou.

Tirou os olhos da pedra, virou-se para o parapeito, puxou o corpo para cima e passou as pernas para fora, primeiro a esquerda, depois a direita. Aprumou seus pés, segurando-se com os braços para trás, soprou o cabelo do rosto e se jogou.

Cheers!