sábado, 28 de novembro de 2015

5.000.000.000 de anos

Reapresentando este texto, de minha autoria, retirado de outro blog.

Um dia nossa Via Láctea vai se chocar com a Nebulosa de Andrômeda. Após isso, presume-se, uma nova chance à vida vai se formar, e talvez toda memória que preservamos se extinguirá. É claro que levará muito tempo pra isso, algo em torno de cinco bilhões de anos. Mas é algo palpável, segundo a ciência.

Pensando assim não dá muita vontade de escrever poesia, um conto elaborado, um diário ou mesmo uma pequena anotação. Não dá vontade de ter filhos, de plantar uma árvore ou de ajudar o próximo. Pensando assim não há muitos bons motivos para deixar nada pra posteridade, até porque a natureza do Cosmo não costuma fazer acordos. Não há muitos bons motivos pra tanto labor e tristeza, tanta riqueza e empatia, a posteridade está condenada.

Mesmo assim, se nem de perto a nossa Via Láctea passar da Nebulosa de Andrômeda, cinco bilhões de anos mais tarde será tempo suficiente para apagar qualquer aviso que se dê hoje, e hoje será um passado tão remoto que será ignorado. Imagine alguém que pesquisa um passado de cinco bilhões de anos. Agora imagine esse alguém tomado da vontade de fazer um exercício de concentração para entender o que se passa hoje. Hum, pensando assim aquele, cinco bilhões de anos na nossa frente, não estará muito mais evoluído do que os de hoje.

Pronto! Mexer com o futuro é mais danoso do que fuçar o passado. Prefiro ser finito, de oitenta e poucos anos e dois filhos, cinco netos e um bisneto que levará meu nome. Prefiro sentar-me e imaginar que daqui a cinco bilhões de anos eu não vou ter feito a menor diferença pras rotas cósmicas da nossa galáxia.

Pelo menos até que eu me mude.

A imagem por trás da tela

Reapresentando este texto, de minha autoria, retirado de outro blog.

Todas as noites em que Cassandra chegava em casa depois da meia noite, de mau humor, subia as escadas fazendo barulho, com o cigarro aceso numa mão e um molho de chaves na outra. Parava no topo da escada resmungando coisas inaudíveis, ligava a luz do corredor e ia, a passos pesados, ao quarto de sua irmã, Lívia. Abria a porta, como quem quer tomar satisfações de algo, e se avolumava na entrada.
O quarto exalava um cheiro heterogêneo, uma mistura de fumaça de cigarro e perfume caro. No cinzeiro havia muita cinza e uns quatro filtros amassados. Uma garrafa de vodca vazia, algumas revistas, sapatos e uma bolsa estavam jogados no chão.
Finalmente, espalhada em cima da cama estava sua irmã Lívia, vestida num pijama estampado de ursinhos. Cassandra ligou a luz do quarto, revelando uma bagunça muito maior.

— Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? — falou, muito nervosa.

Lívia não respondeu

— Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? — gritou.

Lívia mexeu-se na cama e tapou os ouvidos com uma almofada.

— Não finja que não está me ouvindo, Lívia! — continuou — Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? Quantas vezes? — gritou.

Lívia apertou mais ainda a almofada nos ouvidos. Irada, Cassandra pegou o cinzeiro e o atirou no espelho, que trincou, fragmentando a imagem de sua silhueta na porta.
Lívia levantou de súbito da cama, olhando para o espelho quebrado. Voltou-se para sua irmã mais velha e a encarou, nervosa.

— Quantos homens você vai ter que amar para esquecer desse dia, Cassandra?

— Você está bêbada... — disse Cassandra.

— Quantos homens você vai ter que abandonar para esquecer dessa noite, querida irmã? — falou Lívia, fitando a irmã nos olhos.

— Você não respondeu a minha pergunta! — gritou Cassandra.

— Quantos anos mais você vai tentar repetir tudo aquilo? Eu quero entender! Quantos homens mais você vai ter que usar para esquecer do que aconteceu, sua velha maldita? — disse Lívia, iniciando ali mais uma das brigas mais faladas em todo prédio.

Uma vida em Mi Menor

Reapresentando este texto, de minha autoria, retirado de outro blog.

Eu achei um tesouro nos teus olhos, mas quem me dera tivesse teu olhar nos meus. Havia tanto a te dizer, um louco apaixonado somente esperando o dia certo, a ocasião. Nada de palavras decoradas, somente uma sinestesia que tomava conta de mim quando te via. Ah, meu coração saltava do peito quando passavas! Eu corria para o portão para te ver, no horário que chegavas do teu trabalho. Eu acreditava que um dia olharias para mim, e o brilho do teus olhos me enfeitiçaria, e em breve serias minha. Sim, eu cria nisso.

Um dia, porém, eu a vi novamente. Anos de espera já haviam me tornado um paciente algo cansado, mas aquele dia eu deixei todas as palavras do passado no seu devido lugar. Eras tão bela naquele vestido branco florido de flores carmim! Eu deixei o que fazia por alguns instantes e te olhei. Notei que as pessoas paravam quando tu passavas, todos te admiravam. Novamente no meu peito queimou a velha chama do passado, como se eu me reaproximasse do calor da paixão que nutria por ti. Ali, naquele momento, o esplendor de tua passagem moveu meus sentimentos e minhas forças na direção do nobre sentimento. Mas eu me enganara!

Os anos haviam secado minha alma ao sol da espera. Mesmo que te via, sei que dentro de mim já havia um domínio da mente, da razão. Uma luta secular que já mostrava um vencedor. E a fugaz manifestação da velha chama foi logo apagada pelos apelos duma mente já cansada de desejar algo tão belo e intocável. "Pobre de mim", era o que eu pensava. Centenas de olhares, tantas e tantas vezes lançados, nenhum correspondido. Era uma falha muito gostosa de cometer, mas deveras dolorosa de repetir. Resolvi seguir a direção do sol, e deixar teu rastro para trás.

Hoje, pensar em você não é frustração. Nem sei mais se consigo lembrar do teu rosto. Passaram-se cinquenta anos, e a minha memória está corroída pelo tempo. Eu não me prendi em novos grilhões, estou sozinho em meio a terras e mais terras, fruto do único amor correspondido que tive na minha vida, o trabalho. Não penso que seria feliz ao teu lado, o que me convence é achar que você teria sido feliz ao meu. Não sei como, mas sei. E é tão grande a vontade de te ver novamente. Do tamanho da minha tristeza. Assim eu olharia, mais uma vez, para a última mulher que eu amei.
 
Cheers!

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Os Portões do Mar

Há uma profunda tristeza em seus olhos. E uma inquietação perturbadora. Todos se afastam de seus olhares fulminantes e de sua fala eloquentemente sedutora. Mas sabemos que você seduz para nos levar à derrota, grande Irmã. Você seduz para nos tirar a essência, para nos ludibriar e nos arrastar para o fundo de nosso desânimo. E assim você ganha!

Roubastes joias e fortunas. Ganhastes nomes e títulos. Criastes fama e respeito dos fracos. És mesmo uma grande invocadora dos piores e maiores medos. E os humanos nada podem contra ti quando estás disposta contra eles. Sofrimento e arrependimento são armas em tuas mãos. Jamais conhecerei quem tire das fraquezas dos outros a sua própria fortaleza.

Mas te escondes de mim, grande Irmã!

Sei de tua tristeza. Tu já fostes a flor mais selvagem dos campos mais vastos. Já iluminastes muitos sorrisos que te viam como expressão singela do que é belo neste Mundo. Já te desejaram bem e já tivestes muitos Seguidores. Então você conheceu a Ruína. E todos nós vimos tua ruína. Todos nós, lembre-se, já experimentamos a Ruína. Pois isso vem a Todos os Antigos.

Então tu te esconde de mim, grande Irmã! Sua tola!

Você sabe que eu enxergo além da matéria. Eu sei de coisas que você mesma não consegue omitir de si mesma! E toda essa sua tolice é para mim apenas um atraso e um infortúnio. Incapaz de querer compaixão, você segue tentando se esconder, mal sabendo que te vejo em toda a sua tristeza e manipulação. E até que os Humanos não mais te percebam, suas vítimas são o rastro mais evidente de que você ainda age em sua Queda.

Tens medo de meu julgamento! Logo tu, que se agradava com o menor som de minha voz! Agora tens medo de me encarar, e foges. Mas eu te digo: não por muito tempo. Nem matéria nem sua arcana arte da enganação irão te esconder de mim. Quando eu levantar de meu Sono, grande Irmã, o meu esplendor trará luz à tudo que vens fazendo em sua Queda, e revelará a todos o real motivo de sua ruína. Essa tua tristeza sem limites.

Não haverá arrependimento, portanto, não temas meu esplendor. Serei justo! E sei que você voltará para o centro do Vórtice, para onde Todos os Antigos voltarão, junto de mim, seu irmão Mais Velho. E serás amada novamente. E serás a minha grande Irmã novamente!

Cheers!

Blecaute inofensivo

As luzes e muitos olhos brilham.

Sou sacudido por uma forte explosão sônica, alerta e mau trapilho. Suavemente busco alguma ideia mais forte do que fugir. Não consigo parar de pensar em correr. Medo. Aquelas luzes estão longe, e ao mesmo tempo tão perto.

Será que existe no Universo algo que preencha o vazio de algumas almas? Pretendo tentar encontrar. Não hoje.

Cheers!

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Memória Desvalida

Angela estava desesperada. Corria, tropeçava e corria. Não ousava olhar para trás. Ela não era daquelas pessoas que paralisam quando estão com medo. Angela só conseguia correr, sem raciocinar um caminho. Ela tinha que se esconder de seu perseguidor, que tambem corria, em sua direção. Qualquer lugar para se esconder seria o suficiente. Então ela viu um beco.

Era um lugar úmido, havia muita lama e um cheiro de gordura no ar. Logo a frente ela viu caixas e engradados de bebidas. Correu para trás das caixas e se abaixou o melhor possível, sujando o blazer e a bolsa. O perseguidor parou bem em frente a entrada do beco, arfando. Olhou para o beco, desconfiado, e resolveu entrar. O coração de Angela deu um sobressalto, ele estava muito próximo. Ele iria encontrá-la.

Do fim do beco uma voz. Um homem com uniforme de garçom, ainda com um saco preto nas mãos.

- Ei você! O que quer com a moça?

O perseguidor, mais do que rápido, voltou-se e correu para fora do beco, chiando um pouquinho. Angela então respirou fundo, e lágrimas surgiram inesperadamente. Seu coração sobressaltado parece ter parado por segundos. Ela levantou-se devagar, agora olhando aliviada para o homem de uniforme de garçom.

- O-o-obrigada! Meu Deus, eu achei que ia ser morta!

- Você está bem? - perguntou o garçom.

- Estou. Quase morrendo, mas salva.

Angela tomou coragem para ir embora. O garçom lhe trouxe um copo com água. Alguns funcionários do restaurante saíram pra ver Angela. Mais de três vezes ela teve que contar o ocorrido para os funcionários, e para o gerente do restaurante, que já havia ligado para a polícia.

Em casa, Angela pensava no quanto ela queria esquecer aquela perseguição horrível e do trauma de andar sozinha pela noite daquela cidade. A polícia havia dito que ia investigar quem seria o perseguidor. Centenas de perguntas.

Angela morreu num domingo, enquanto andava de bicicleta, vindo de um encontro com seus amigos músicos. Ela foi atropelada por uma cidadã que estava alcoolizada e brigava com seu namorado pelo telefone na hora do ocorrido. Angela não resistiu aos ferimentos, e a cidadã conseguiu um habeas corpus no dia seguinte.

Não se sabe nada do perseguidor. A polícia jamais descobriu. Até hoje o garçom ainda se sente feliz só de pensar que salvou a vida de uma desconhecida. O beco recebeu iluminação e uma câmera de segurança foi instalada acima da porta dos fundos, em direção a entrada do beco. E até hoje os amigos músicos de Angela ainda depositam flores em seu túmulo no dia do seu aniversário.

Cheers!

A vida, essa obra prima

Mircathau estava com medo de assalto. Deixou o celular em casa e foi para a faculdade. Estava cursando o quarto período de algum curso de Exatas. Ele ainda não sabia o que esperar da vida quando finalmente se formasse. Era mesmo um rapaz prudente, quase um medroso. Mas não se podia dizer que ele estava errado. Sua cidade estava um caos. Bandido em cada esquina, cada ponto de ônibus, e até dentro dos mais seguros estabelecimentos comerciais.

Sua namorada, Yre, nunca havia contado para os pais sobre suas aventuras homossexuais com sua segunda melhor amiga, Breita. Hoje ela é muito mais feliz com Mircathau. Mesmo assim ela ainda frequenta a cafeteria onde as ex-colegas de seu antigo trabalho consomem diversos expressos e pães "gourmet". E elas quase nunca falam de trabalho. Yre encontra moedas no bolso de seu jeans predileto, que ela ia por pra lavar, e fica feliz. Um dia, quem sabe, essas moedas a salvem de alguma necessidade?

Quinze minutos antes das treze horas. O alarme de Yre toca seu coração. O horário de começar a arrumar a surpresa pra Mircathau. Ingredientes para um bolo de laranja estão dispostos na mesa, bem organizados. Cortesia de sua mãe, Dona Lozália. Tudo tem que estar pronto antes das sete da noite, hora em que seu prudente namorado chega da faculdade. Uma felicidade boba lhe ocorre ao pensar na reação de Mircathau.

O professor mais egocêntrico de seu curso resolveu pensar no próximo! Sugeriu a turma que cantassem parabens para Mircathau. Nem todos cantaram, a maioria só aplaudia. Todos sorriam. E então Tanerato sugeriu um discurso. Ninguem quis falar. Esse professor estava mesmo bem diferente naquele dia. Mircathau procurava algo nos bolsos, suava frio. Tímido. Então o pedido de Tanerato ficou no vazio. Todos agradeciam em suas mentes. A aula recomeçou com quase quinze minutos de atraso.

Antes de chegar em casa, Mircathau passou no comércio de Seu Udanaiam e comprou duas garrafas de dois litros de seu refrigerante predileto. Caminhou pra sua casa sorridente. Passava com alguma dificuldade pelos muitos buracos nas ruas próximas de sua casa. Pensava em Yre. Os ingressos do cinema estavam bem guardados no bolso. "O Jardim de Scetávia" era o nome do filme, um romance adaptado de um livro não-muito-famoso.

Mas eles não assistiram filme algum. Yre não estava em casa. Um bandido havia acabado com os planos de Mircathau e, vocês sabem, com a surpresa de Yre. Uma casa decorada com balões, uma mesa cheia de docinhos e o lindo e perfumado bolo no meio, mas uma casa vazia, abandonada as pressas. Os cães ainda latiam alertas lá do quintal. Então Mircathau foi atras de saber o que houve. Procurou vizinhos. Nada importante. Eles mais queriam saber do que dar alguma informação.

Yre estava aflita. Uma pressa incomum em suas pernas fez com que Dona Lozália ficasse pra trás. Um bandido baleado estava sendo linchado numa calçada de azulejos verdes. Dentro da casa, Seu Pabrato recebia primeiros socorros emergenciais. Ele era hipertenso, e estava muito tenso. Yre rompeu o cordão de curiosos postados em frente a casa de seu avô e já chegou chamando por ele. O ancião respondeu, quase feliz. Os vizinhos dele ajudavam. A ambulância chega e a polícia tambem. O povo se dispersa um pouco.

Mircathau liga para o celular de Yre usando o aparelho de um amigo de infância que ele havia encontrado, ainda desorientado, na rua. Yre já está dentro da ambulância indo para o hospital, com seu avô. Ele chora. Ela chora.

Cerdnam, em sua infância pobre, jamais saberá como foi o aniversário de seu pai, cerca de seis anos atras. E como se deu da morte de seu bisavô, avô de sua mãe. Ele deverá ser uma criança cercada de amor, carinho e afeto. Mesmo que o mundo seja esse caos organizado. Uma criança inteligente. E um dia descobrirá a verdade! Sozinho.