sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eu não gosto de você!

Inflamável.

Essa única palavra escrita a mão com uma tinta vermelha, com um sombreado preto igualmente feito a mão, bem no meio da página. Há uma gravura de fogueira na altura do rodapé, um desenho bem rudimentar, como os que são encontrados nos lugares onde os homens das cavernas se abrigavam do frio e do perigo. Eu tenho a impressão de ter visto as letras se moverem, flamularem, por um breve momento. Uma única página com uma única palavra.


Lembro de quando abri o livro aleatoriamente e havia a palavra “volte” escrita em maiúsculas e em forma de rabiscos e rasgões. Aquilo me assustou de verdade. Era como se o livro estivesse me dado um comando, uma ordem expressa. Foi o que eu imaginei. Não sabia nada do que sei hoje. Esse simples mistério me deixou meses sem querer tocar no livro, sem vontade de ler novamente suas páginas misteriosas.


Se ao menos eu ainda pudesse ir naquele sebo maldito! Eu desconfio que aquele homem sabe mais do que aparenta, com aquele sorrisinho antipático e roupas de inglês em velório. Aquele lugar ainda me inspira curiosidade, assim como aquela praça, aquele banco de praça, aquelas velhas de cabelo branco. Acho que estou pensando demais no livro, nesse mistério todo. Talvez eu deva me concentrar nas entrelinhas. Acabar com essa neurose de que há um livro que se comunica comigo, e que tudo ao seu redor está envolto numa trama. Vou prosseguir a leitura.


Inflamável! - digo, em voz alta.


Num grande clarão surgem chamas em meu escritório! Labaredas amarelas e vermelhas, um calor infernal lambe meu rosto, eu me protejo com as mãos, solto o livro, que cai aos meus pés. Olho ao meu redor e todos os móveis e livros estão em chamas, e me sinto num turbilhão de fogo e caos. A madeira crepita, e faíscas voam com lufadas de vento que vem da janela. Minha escrivaninha me impede de pular, há ali chamas realmente muito altas e vermelhas. Eu tento gritar por Elza, mas o ar quente invade meus pulmões, e começo a tossir. Encosto minhas mãos na boca, e vejo meus dedos em carne viva, com a pele queimada. Minha carne fede a fumaça. Quanta agonia.


Eu olho para o livro e ele está lá, coberto de chamas que correm de suas páginas, como se ele estivesse regendo aquele inferno vermelho. Tento desesperadamente gritar por Elza, mas a imensa dor das queimaduras me impedem. Estou em chamas! Tento me virar para a porta, mas minhas pernas parecem estar soldadas ao chão crepitante. Eu tento gritar por Elza, e meu maxilar se desprende de meu crânio. Estou em chamas! Daí, num movimento involuntário eu me ajoelho em frente ao livro, e meus braços o alcançam. Esse livro maldito, vou jogá-lo pela janela! Eu o tomo nas mãos, e então a próxima página desliza sozinha para a esquerda.


Num farfalhar as labaredas se dissipam, tudo se restaura. A dor agora parece um gélido abraço de uma brisa que entra pela janela, aberta e voltada para o meu jardim. O livro está intacto, assim como meus braços e pernas, e minha roupa. Os insetos das bromélias sobrevoam meu rosto, e o cheiro do chá que Elza deixou para mim invade minhas narinas, e esqueço o fedor de carne queimada. Me assusto horrivelmente! Que magia negra é aquela? Largo o livro para longe, e ele cai, pesado, fechado como um cofre seguro. Minha sensação é de terror! O que foi aquela alucinação?
 

Eu tenho que me livrar desse livro maldito!

Cheers!