sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O Ofício do Pai Solteiro

Marc entra na locadora e procura aquela fita do filme predileto de seus filhos. Pela enésima vez vai tocar aquela música melosa novamente, mas enquanto o filme passa ele consegue ter tempo para focar nos seus trabalhos. 82 minutos de paz e uma provável trégua entre os irmãos. Pior seria a gritaria de uma sessão de vídeo game...

A atendente da locadora parece doente. Realmente seu nariz está vermelho, em contraste àquele branco amarelado de uma moça que abomina sair ao sol. Suas pálpebras estão levemente inchadas, e ela estanca com um lenço a coriza. Visão perfeita antes do almoço.

Corredor das fitas infantis. Filme de monstros fofinhos, sobre amizade, um musical, outro musical, um do Frankenstein adolescente, musical, Ursinho Pooh, gospel para crianças, dinossauros fofinhos. Cadê o filme predileto? Procura mais, título após título. Nada. Última prateleira. Um terrível filme sobre ratos que salvam a cidade de gatos piratas, porcaria. Um filme sobre a Amazônia, razoável. Nenhuma pista do filme predileto.

Vai até o balcão, onde a atendente já o fita pacientemente. “Bom dia”, ela diz. Ele pede que ela consulte pelo filme, ela já responde “alugado, senhor”. Ela já sabia a pergunta. Ele já temia a resposta. E agora? Um impulso toma conta de sua mente. Vai procurar o mais próximo que ele encontrar do enredo do filme predileto. Nova missão, novo desafio. Tantos títulos, ele conhece alguns, mas nenhum chega perto de ser parecido com o predileto.

E agora? Vai perder um dia de trabalho porque não consegue domar o ímpeto dos filhos? Ele começa uma espiral de pensamentos, nenhum deles lhe garante paz e foco. Só maquinações e mais ideias. Ele não pensa em fugir. Não, ele já superou essa fase. Está seguro que vai conseguir algo para oferecer. Seus filhos não são monstros, só um pouco hiperativos.

Despede-se da atendente. Desce a rampa com maquinações. Entra no carro com mais dúvidas. Diabo de fita, da próxima vez ele vai escondê-la na sessão de ficção científica. Uma parte de si agradece por não ter que ouvir a tal música do filme, ela é realmente chata. Tira sua atenção, e quando percebe, está cantarolando ou assobiando a melodia. E isso tira seu foco.

No caminho de casa ele recebe um SMS. É seu filho mais velho. “O TÉO ESTÁ AQUI EM CASA. PODEMOS USAR O TOCA CD”, assim mesmo, sem acento. Ele acelera. A vizinha ficou tomando de conta, ela pode ter saído, eles vão bagunçar a casa. Téo é um outro vizinho, de uma vila ao lado. Bom menino, mas tão arteiro quanto seus dois filhos combinados. Uma sensação de urgência lhe acomete, sua casa está a duas quadras.

Para o carro. Desce do carro e sobe as escadas, simulando alguma calma. Imagina, por um milésimo, a casa em ruínas e um Toca CD em chamas e os meninos assando marshmallows espetados nas costelas da vizinha. Abre a porta de casa e o susto: 3 crianças sentadas no sofá, limpas, caladas, cada um com um pequeno pote com pipoca e um filme de guerreiros estelares passando na tela. Maravilha! Como foi tão fácil? O Toca CD está intacto. A vizinha se encarrega de explicar como conseguiu convencê-los. É o suficiente.

Marc entra em seu escritório mal arranjado na sala de jantar. Está aliviado. As maquinações vão se dissipando, a sensação de urgência vai se tornando em pequenas risadinhas no canto da boca, a agonia se torna alegria de ver que está tudo sob controle. Será um dia produtivo. Agradece a vizinha, que se despede. Vamos ao trabalho.

Senta em frente ao computador, apruma os dedos no teclado. Foco. Foco no trabalho.

Cheers!