sábado, 5 de maio de 2018

Na noite

A chuva não passava. Uma dúvida incomodava Carly. Em sua mente diversas incertezas, como sombras, a resposta não surgiria sem reflexão. Ela já estava olhando para aquela xícara com café por longos minutos, perdida em frases que não se completavam. “E se?”, era a pergunta que ela mais fazia para sua consciência, para sua memória. O frio a incomodava mais, e ela se aninhava em cima daquela poltrona marrom, suas mãos pálidas e sua pele fina. Ela esconde os pés embaixo do cobertor improvisado com o tecido da cortina. Longos nadas respondem suas incertezas. Ela observa ao seu redor, como se procurasse uma ponta solta do novelo de memórias traidoras, com a esperança de um gato atrás de seu brinquedo. Suspiros.

O café está frio. Nenhuma disposição para buscar mais. Além do mais, ela escutava vozes na cozinha, e se ilude com a ideia de que vão lembrar dela naquele isolamento. Seu maior conforto é o fato de estar aquecida. Sua maior desilusão é saber que não há ninguém na cozinha. Ela está longe de conceber algo real de fato com sua mente, e nem sua memória lhe ampara, lhe garante sanidade. Suas dúvidas parecem ser uma extensão da extenuante batalha que sua mente trava todos os dias. Mas ela acredita ter um discernimento do que é real, e do que não é. E, mesmo assim, isso não responde sua pergunta. Só posterga a resolução dela. E a chuva não passava, e isso só lhe garantia mais frio, e a busca de um ninho mais aquecido. O frio era a própria estranheza, a dúvida era o familiar.

Carly olha para o relógio na mesinha ao lado da poltrona. Pouco mais de uma hora e cinco minutos da madrugada. Esteve por muito tempo perdida, sem achar sentido para o seu ser, sem sua resposta. Uma sensação de vazio, habitual, preenche seu corpo. Forçosamente ela estica sua mão pálida para pegar a xícara. O gole do café nada esquenta, nada conforta. Ela suspira. Olha para o teto, e a oposição que a poltrona faz em relação a janela lhe impede de ver a chuva lá fora. “Mas a chuva está aqui dentro”, ela pensa. Mesmo assim, seu ninho não representa mais conforto, e já começa a ficar bem quente ali. Ela estica os pés, e toca o solo devagar. Não está frio. Ela então ergue o tecido da cortina acima da cabeça, e retira-o com o movimento de um toureiro que acabou de esquivar-se de um touro enfurecido. Para seu espanto, não está frio. Isso lhe deixa alerta. Não há vozes na cozinha. Não há o som da chuva lá fora. É noite, mas uma noite quente. A xícara sequer está lá, na mesinha. Será que aquilo tudo era um sonho? Aquela dúvida que havia lhe aprisionado por tanto tempo, aquele frio que lhe oprimiu, as vozes, eram tudo irreais?

Ela sentiu como se um impulso em seus pés. Virou-se para a poltrona. Não havia tecido da cortina. Somente a poltrona marrom aconchegante, com a clara evidência de uso. As formas do corpo, que lentamente iam sumindo, enquanto a espuma macia restabelecia seu formato. Ela estranhou tudo aquilo. Ela havia ficado muito tempo perdida, e mesmo naquele instante sua memória não lhe amparava. Só conseguiu distinguir o relógio na mesinha. Pouco mais de uma hora e sete minutos. Aquela confusão, sensação de coisa nenhuma com qualquer coisa. “Nossa, está tão tarde!”, foi a única coisa que lhe ocorrera. Então ela sai do escritório e se encaminha para o quarto, não sem antes ir até a cozinha e constatar que não há ninguém lá, sequer vozes. Ela olha ao redor, seu pensamento orbita por alguns segundos, daí sai dali. Caminha até o quarto. Abre e fecha a porta, e um sono repentino relaxa seu corpo. Ela olha para a janela, realmente não há mais chuva, mas uma garoa. Estica-se em cima da cama, cobre-se com seu cobertor. Abraça-o, num último resquício de dúvida, vira-se e fecha os olhos. Ela quer o sono. Ela dorme.