domingo, 5 de maio de 2019

De Jorad e Nihadir

Jorad e Nihadir iniciaram sua viagem pelo país em sua missão sagrada, extirpando o mal de Nucalen pouco a pouco, vila a vila, e reanimando a fé nos deuses entre os doradis e os estrangeiros, sobretudo os maladins de Ecésia. Vivendo de doações, hospedando-se sob convite dos mais humildes e carregando somente o que eles mesmos podiam carregar, e todos os instrumentos da fé no cavalo Nahritala, conseguiam cobrir grandes regiões, e poucas vezes se distanciavam um do outro. Nihadir já praticava o arco e flecha, e quando encontrava com seu pai, sempre mostrava sua habilidade crescente. Jorad gostava de ouvir as histórias dos mais antigos, e vivia cercado de crianças, produzindo mágicas para entretê-las. Em alguns anos eles já eram bem conhecidos em todo o sul do país.

Em sua caverna de carvão e sal, Nucalen planejava suas malícias, reunindo os homens maus, e criando seus demônios lentamente. Em sua ira, durante sua derrota nos Campos de Himlal Kala, ele havia deixado cair seu ecso valioso, e agora estava sem poder fundir Barala e Cezhalnadir, e sua coroa também havia sido partida. Fraco e sem armas, ele só conseguia saber por meio de espiões todos os feitos de Jorad e Nihadir. Sua poderosa magia agora dependia dos homens, e isso o irritava. Sacrifícios em Tulan Fil voltaram a aterrorizar os Vales do Arroz, com dezenas de sequestros, e demônios gigantes vagando e destruindo. Voltavam-se para o norte cada vez mais, fugindo da missão sagrada dos reminiscentes da Kvala ara Kala.

Quando chegaram na capital do território de Puunij, Jorad e Nihadir reuniram-se aos reminiscentes. Os velhos guerreiros estavam cansados, e já desejavam largar as armas, se pudessem. Outros, com limitações físicas, já desejavam doar suas relíquias sagradas para os principais templos. Somente a fé os mantiveram por tanto tempo em pé, em missão. O mais antigo de todos, Dalaran, estava cego e só conseguia sobreviver das doações pelas aulas de línguas aos mais jovens. Ele, que havia empunhado a espada da própria deusa Kalis, agora não suportava sequer o peso dos livros. Diante dessa situação Jorad reuniu uma assembleia junto aos anciões da capital para deliberar sobre os novos iniciados na fé, aqueles que iriam suceder os reminiscentes. E assim foi feito, e em três dias dezenas de jovens se ofereceram. Mas eles precisavam de milhares, e assim Jorad e Nihadir deixaram a missão sagrada para se tornarem Mestres, apesar da pouca idade. Começaram uma nova viagem pelo país, em busca de reconstruir todos os templos e suas escolas de sacerdotes.

E antes da data do primeiro Unala daquele ano, a arvore que o deus Udir havia plantado em Tulan Fil brotou, e aquilo preocupou muito Nucalen e seus demônios. A necessidade de reunir um exército maior que o anterior urgia em seu pensamento, e logo ele procurou novamente seu maior aliado no estrangeiro, o demônio Lemetit.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Está tudo bem

O topo do prédio estava coberto por uma poeira cinza, esponjosa, fétida. Cada passo deixou uma impressão do tênis de Débora no chão que levantava uma pequena nuvem de poeira. Mais a frente ela viu bitucas de cigarros, e embalagens de chicletes, provavelmente dos funcionários do prédio que se aventuravam no topo. Ela tropeçou numa fiação exposta, mas coberta pela densa poeira. Estava incômodo respirar, e a luz ali era ineficaz, produzindo sombras diversas.

Com cuidado ela avançou, evitando tropeçar. Teias de aranha e suas armadilhas geométricas esbarravam conforme ela seguia. Um trecho onde realmente a poeira esponjosa havia se aglutinado pareceu ser um obstáculo, e Débora resolveu dar a volta, mas acabou caminhando para uma parte onde as caixas escondiam a luz. Vacilando ela tropeçou e se apoiou em caixas empoeiradas, e dentro dessas caixas haviam livros úmidos. Ela parou, enxugou nervosamente a mão na calça e levantou o joelho, afim de sair daquele caminho. Seguiu rumo contrário, e forçou passagem pela poeira esponjosa aglutinada. Quase nenhuma resistência, mas toda aquela poeira suspensa no ar já irritava seu nariz.

Com algum esforço para não se apoiar em outras caixas ela caminhou na direção da única lâmpada do recinto. Já era possível ver o piso, mas não seu tênis. Ali ela parou, visualizou tudo que pôde, e calculou o caminho. Montes e montes de poeira esponjosa pareciam varridas em todas as direções, como grandes nuvens de tempestade, aglutinando fios, pelos, sujeira. Não havia um caminho lógico naquele momento, então ela arrastou o pé na direção que exercesse menor resistência.

Tropeçou uma, duas vezes, enrolou os pés no que pareciam arames soltos, e, entrincheirada, com nuvens pela cintura, ela resolveu usar as mãos. Buscava obstáculos, como uma criança vendada em busca dos amigos nas festas de aniversário de sua infância. Esbarrou em caixas de papelão, de madeira, derrubou cabos do que pareciam ser de vassouras, e imergiu na poeira. Aquele túnel cinza, com lapsos de luz que entremeavam a esponja fétida, como relâmpagos numa tempestade, e logo toda sorte de bagulhos caíram sobre sua cabeça. Por diversas vezes ela desviou seu curso, cega, desorientada e incapaz. Tateou caixas, e o desespero tomou conta dela. Com um singular senso de direção, empurrou todos os obstáculos possíveis com mãos, pernas e corpo, e a poeira já lhe ardia nos olhos e nas narinas. Afogando-se no ar pesado, ela nadou e murmurou, sozinha naquelas nuvens de poeira esponjosa, resistindo a tudo, até que um sopro de vida tocou seu rosto. Era a porta para fora.

Avançou porta a fora e se livrou daquelas mãos que fumegavam poeira. Uma sensação de liberdade, seguida de frio, e brisa. O piso estava molhado da chuva passada. Ela olhou para si, e estava coberta de poeira, dos pés a cabeça. Limpou o rosto com a parte de dentro da camisa, tossiu e deu uma olhada ao redor. Chaminés com fumaças brancas, ferros retorcidos do que já foi um banner e alguns fios expostos. Com um suspiro ela se dirigiu à beirada e contemplou os prédios maiores ao redor. Com suas mãos sujas ela segurou o parapeito e deu uma olhada para baixo. Viu o tráfego noturno daquela rua tão conhecida, acompanhou a sequência verde-amarelo-vermelho do semáforo e sorriu. Estava verde pra ela.

Débora tirou do bolso um papel amassado, leu tranquilamente e sorriu. Dobrou em três pedaços e juntou, com as duas mãos sujas, próximo do coração. Ficou alguns segundos pensativa, desprezando a fina chuva que caía. Quando saiu de seu transe, olhou para o chão e encontrou e pegou uma pedra. Avaliou o peso da pedra, seu formato e cor, e parecendo satisfeita, abaixou-se, depositou o papel no chão, pôs a pedra em cima e levantou.

Tirou os olhos da pedra, virou-se para o parapeito, puxou o corpo para cima e passou as pernas para fora, primeiro a esquerda, depois a direita. Aprumou seus pés, segurando-se com os braços para trás, soprou o cabelo do rosto e se jogou.

Cheers!

domingo, 17 de março de 2019

Entendimento

Sim, concordei que essa era a melhor decisão. Embora as dúvidas, sabíamos que tínhamos que ter um consenso. O melhor para duas pessoas em conflito. Em uma busca tremenda que abalava todos ao nosso redor. Pensando nisso, eu busquei em minha mente todos os conflitos, as discussões, as diferenças. Não posso fazer tantas concessões. Mesmo na atual situação em que eu estou vivendo. Um convidado, talvez.

Não acredito que ele acha que eu estou errada. Expliquei tudo pra ele. O tanto que eu me entreguei, quantas coisas eu desisti pra estar ao lado dele. Não acredito que ele consiga simplificar as coisas assim. Por acaso eu sou a vilã da história? Como posso ser menos que uma mera espectadora dos fatos, ou somente passiva do que ele escolhe por mim? Ele acha que estamos nos equalizando com decisões? Não creio. Quero minha vida de volta.

Acho que o pior já passou. Não vejo tantos problemas, e estou tão tranquilo com nosso consenso. Finalmente eu posso olhar pra ela e pensar que estamos em equilíbrio. Talvez agora nosso relacionamento vá progredir. Dinheiro nunca foi problema. Ela sempre foi desapegada. Algo raro. E eu preservei isso, não me dei a luxos, ao supérfluo. Não estamos quites, ainda, mas buscando a solução para problemas infantis que nos levam pra baixo.

Eu quero acreditar nele. Uma parte de mim quer condenar a convalescença que ele tem com nossas brigas, mas outra parte imagina e aceita que é, no mínimo, mais racional como eu nunca fui. Ele é racional. Eu sou racional, mas coração demais. Queria acreditar, ele não tem todas as soluções. Eu sou tão horrível assim? Querer demais é algum pecado? Ele não consegue entender. Eu sei que não. Estamos fazendo um acordo falho. Dei minha palavra em vão. Estamos na mesma, comigo sendo a vilã. Mesmo ele sendo o racional.

Cheers!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Na velha choupana

Em leve espanto desperto de um pesadelo. Uma penumbra cobre meus pensamentos, e lá fora há uma névoa densa. Ou serão meus olhos? Resolvo fechar a janela e voltar a dormir. Mas do que se tratava meu pesadelo. Não consigo mais lembrar. Essa sensação de curiosidade pelo bizarro, já fui muito criticado por isso. Dou uma boa olhada no quarto, quanta bagunça, pareço uma criança de 7 anos. Mas sem brinquedos. A oportunidade de estar desperto me faz ficar pensando nas coisas que ainda tenho que fazer antes de ir. Essa porta é tão bonita!

Eu nunca havia prestado atenção no frio que é esse piso a noite. Um frio incomum. Meus pés gelam, e eu me sento na cadeira da escrivaninha. Levanto os pés, mas que tolice, o frio estará lá. A doce ilusão de negar a realidade. Respiro fundo, penso no que tenho a fazer, mas só consigo pensar na minha curiosidade pelo pesadelo, sem sucesso. Percebo que meus lençóis estão num tom azul marinho, e as folhas produzem aqueles sonolentos sons de quando o vento passa devagar. Creio que já esteja na hora de esquecer, pesadelo e planos, e voltar a dormir.

Embrulhado, pálpebras fechadas, respiração suave, e a mente trabalhando. Tenho a sensação que a cama me engole, e me cospe de volta. A insônia? Pareço um aluno de cálculo em busca da resolução de um problema. Viro meu corpo para o outro lado, pálpebras fechadas, e mais cálculos e cálculos. Nenhuma resposta. Abro os olhos e observo pela enésima vez o telhado, e meus ouvidos ainda ouvem o farfalhar das folhas em meio a um vento que se avoluma lá fora. Penso no chão frio. O frio me atrae, mas continuo na cama, embrulhado. Os pensamentos cansados se repetem, e se revezam. O que será que eu estava sonhando no meu pesadelo? Sangria do tempo maldita! Me faço dormir, sem dormir. Essa porta é tão bonita!

Cheers!

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Prisma Imagético

Somos sombras constantes. Ao alvorecer somos somente figuras que se movem lentamente. Os outros nos consideram inferiores, e nós nos vemos como evoluídos. Essa é uma visão moderna, doméstica, de seres que lutam pra não reconhecer fraquezas, defeitos. Estamos constantemente batalhando para nos mantermos sérios, certos, firmes, seguros e sossegados. Até a ilusão ser nossa vida, preenchida por incertezas, imprudente, doente, inconsequente. Humano.

Somos luz vibrante. Ao anoitecer nos movemos com a velocidade do vento. Os demais nos consideram uma ameaça, e nós nos vemos como libertos. Essa é uma visão antiga, perene, de seres que relutam para se conhecer, abraçar, envolver. Inútil querer esconder a natureza que nos torna fascínio, misteriosos, magia, poderosos e essência. A realidade é nossa vida, cheia de raízes, culturas, línguas, sabores e sentidos. Encanto.

Somos números e constantes. Sob infinitesimais limites nós agimos. Os diferentes de nós nos classificam, enumeram, rotulam e organizam, e nós nos vemos como simples uns e zeros. Essa é uma visão fática, matemática, de fatores que usamos para reconhecer e representar dados, feitos. Não há cansaço, e sabemos que somos os que nos fizeram ser, conhecer, ter, gerir. Não somos vida, somente cabos e fios, placas e moldes, peças e ferramentas. Razão.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Em Verdes Campos Dormirei

Nos encontramos na floresta. Seus olhos estavam como tochas, vermelhos. Sua voz estranha, e suas palavras embaralhadas, eu até me assustei. Eu estava apreensivo pela demora, e odiei aqueles SMS com ameaças infantis. Será que eu já não havia sido humilhado o suficiente? Neste momento sua família deve me odiar! Mas eu estava ali, não? Vamos conversar.

Cheguei da padaria sem a sua torrada favorita. Eu sei que isso vai te irritar mais ainda, mas continuo acreditando que não tenho culpa dos seus hormônios. Eu poderia dar dezenas de exemplos, mas nem a ciência me ampararia. Passo pela cozinha, deixo as compras e corro pra que você não me veja. Estou exposto, e daqui a 20 minutos eu tenho que estar a caminho do trabalho. Acelero pra deixar tudo organizado na mesa. O café está muito perfumado, vocẽ vai gostar. E do chocolate.

O médico me avisa que estou com câncer. A mesa dele parece tão perfeitamente arrumada. A moldura do que parece ser um diploma está tão brilhante. Ele fala que eu devo me preocupar, que está num estágio avançado, e tenta me persuadir a começar um tratamento. Eu escuto o som do solado do sapato caro dele batendo no chão, ele está mais nervoso do que eu, aparentemente. Ele gesticula de uma forma elegante, talvez tentando se conter ao contar essa tenra notícia. Afinal de contas eu sou filho do amigo de infância dele, um infortúnio.

Aqui é frio. Aqui é escuro. O ar é úmido. Essa sensação de estar sendo observado, constante frio na barriga. Eu não sei o que você quer de mim, só me entrego, e elevo meu pensamento pra longe do mau querer. Essas flores em minha mão, quase esqueço o que elas fazem ali. Um espirro, pólen. Estou cansado, mas focado. E você está linda. Você está bizarramente linda, com esses olhos vermelhos. Mas é bem melhor calada. Até que tudo se resolva.

Chego no trabalho, meus colegas estão reunidos em um semi círculo ao redor da tevê do escritório do gerente. Alguns deles estão com uma expressão grave, outros gesticulam, mas a maioria só assiste, como se estivessem esperando sair a próxima combinação letra e número de um bingo. Um burburinho, e todos se voltam para mim quando eu passo imediatamente na frente da porta da sala do gerente. São zumbis? Eles me olharam, ávidos, e vieram todos em minha direção, apontando e chamando. Eu saio dali, um susto repentino, eles abrem a porta da gerência quase se estapeando, ombro a ombro. Eu me afasto. Eles me chamam, "espere" eles dizem. Eu acabo tropeçando e meu gerente me segura pelo braço. Ele está com um rosto assustado.

Tenho 13 anos. Aquela floresta me dá medo, mesmo com toda aquela luz, e o clima quente e abafado. Eu não confio nas suas palavras, nem nas coisas que você está falando. Eu não quero acreditar em você. Quero ir embora, ver minha mãe. Sinto pena de você, mas tenho medo de dizer. Tenho medo de você, essa é a verdade. Eu chuto as folhas, e você não para de falar. Vou levar uma bronca por estar ali, aquele tempo todo. Você gagueja, eu não entendo uma só palavra. Eu sinto que devo correr, mas o seu cabelo...

Nunca mais te verei. Não chore. Não quero que você chore. Eu te amo, você sabe. Eu estou em paz. Não, eu não quero que você se lamente. Não se lamente, meu amor. Não sinto dor, estou tranquilo, em paz. Acredite. Só que a gente não vai mais se ver, e isso eu devo te dizer. E não é triste, desde que eu esteja em paz, não há incômodo algum. Não chore assim. Calma. Me desculpe ter esquecido as torradas. Perdoe a pressa, eu estava atrasado. Nunca mais estarei atrasado, olha o lado bom. Sem reclamação.

Estou em paz!
Cheers!

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Relato de Granatur à Rainha Tulrissa

Relato de Granatur à Rainha Tulrissa, sobre a tentativa de resgate mau sucedido da princesa Túla, em nLótis, durante a Guerra dos Marodeus.

"Primeiro mataram Jakkar, da tribo dos mehías. Nos agrupamos próximos da floresta, e até o final daquele dia não fomos importunados. No segundo dia vimos uma movimentação muito grande, mas já estávamos em guarda. Mal pudemos descer a colina, e um furacão com raios e trovões surgiu, e levou alguns de nossos cavalos, e muitos guerreiros em armaduras leves. Era obra dos arcanos, com toda certeza. Sequer vimos nossos inimigos. Nesse ataque morreram Thrád e Ílag, dois elemitas que vieram voluntários, além de Bonossur, e Zarende e Mlowodur, da casa Real. A partir daí planejamos um ataque pela madrugada.

Com a noite nublada, nós seguimos em direção da cidade sitiada. Andamos algumas milhas, mas nossos batedores logo voltaram. Havia um pesado pântano ao redor da muralha da cidade, criado pelo desvio do rio Két. Não havia como nossos cavalos seguirem, a não ser que nós voltássemos para o caminho do sul, que era perigoso e sabíamos que estava sendo vigiado. Precisamos decidir naquele momento, Senhora, ou perderíamos a chance de ganhar a dianteira. Mas não havia outro caminho melhor além do pântano. 

Deixamos uma guarnição destacada com os cavalos, em um terreno alto, e seguimos, com batedores. Caminhamos com dificuldade pouco mais de duas milhas, quando fomos fortemente atacados. Eram bestas do pântano, e nosso clérigo nos confirmou isso. Eram cobertos de lodo e raízes, e deles brotavam muitos tentáculos, a própria água em nossa cintura exalava um fedor pútrido, que espantou alguns despreparados. Mesmo assim conseguimos vencer, a avançamos. Já não víamos o caminho, tão densa eram as nuvens, e desprovidos de tochas que ficamos. Já pensávamos em parar, para descansar, quando sofremos o segundo ataque das bestas.

Dessa vez, Senhora, eles eram maiores, quase do tamanho das próprias árvores, e eram três vezes mais em números do que os anteriores. Não havia como lutar naquelas condições, e Mulmalar, seu primo, foi morto. Nosso clérigo conseguiu deter um deles, petrificado em gelo, mas os outros o atacaram. O próprio gelo havia prendido os corpos de alguns soldados, que morreram numa só investida. Os golpes de espada nada feriam os corpos deles, as flechas eram inúteis. O filho de Jakkar, Jonedrar, foi decapitado na minha frente. Era uma batalha horrível, Senhora. E quando começávamos a debandar, a meu comando, eles atacaram nosso clérigo. Simislaus morreu em batalha, Senhora. Ele gritou évoras poderosas antes de perecer. Então nós fugimos, voltando por onde viemos.

Tivemos uma grande dificuldade na volta, porque haviam soldados perdidos no pântano. Perambulamos por muito tempo, até que percebemos que já irradiava o dia. Os poucos soldados que ainda estavam comigo pediam, desesperados, para que parássemos, mas algo me alertava que estávamos a pouco distantes de nossos inimigos, e ordenei que continuássemos. Com muito esforço conseguimos chegar nas bordas do pântano, a muito distante de onde deixamos o destacamento com os cavalos, mas ali eu cedi ao pedido dos meus soldados, Senhora, e descansamos um bocado, e pude ver o estado dos feridos, além de sinalizar com gritos para que os demais que ainda estavam perdidos pudessem nos encontrar. Eu mesmo vi meus ferimentos, e providenciei socorro aos meus.

Com grande esforço reuni os homens para voltarmos, e encontrar os cavalos, e suprimentos. Andamos algumas milhas, indo para oeste, numa curva à esquerda, mas tivemos a pior visão de todas. Todos do destacamento, incluindo o bravo Oboedigar, estavam mortos, suas vísceras expostas e seus corpos pendurados em árvores que, minha Senhora, não estavam lá quando partimos, e que tinham um aspecto profano. Alguns cavalos também estavam mortos, com as vísceras também expostas, e nenhum suprimento a vista. Aquilo mortificou os homens, Senhora, e o desespero nas vozes deles é algo que eu dificilmente vou esquecer. Foi um duro golpe, e o ânimo nos abandonara. Mesmo assim eu conseguia ver olhos cruéis nos observando embaixo das árvores do pântano. Eu providenciei que os homens saíssem dali, da frente daquela visão horrível. Sentamos no alto, sem esperança, minha Senhora, e a morte já nos era certa se os inimigos nos emboscassem.

Mas, num vislumbre de que os deosos estavam nos observando, surgiu um cavaleiro, e ele trazia, amarrados e em fila, quatro de nossos cavalos. Aquilo nos alegrou, Senhora, mas todos estranharam quando o próprio cavaleiro se aproximou. Pois ele era um do povo dos elfos, minha Senhora, e se aproximou lentamente, com um compreensível cuidado. Parou próximo, em silêncio, e ofereceu a corda que guiava nossos cavalos. Os homens estavam petrificados, então eu mesmo fui lá buscar a corda. Eu vi o elfo de perto, minha Senhora, de muito perto, e fiquei próximo do estribo de seu alto cavalo. Ele era branco, de um rosto fino, e cabelo dourado, e se vestia como um príncipe. Ele olhou para os homens, e eu pude ver compaixão no rosto dele. Quando eu já ia me afastar, ele elevou a mão, e debaixo de sua veste eu pude ver a bainha de uma espada. Me assustei, mas ele não reagiu com violência. Virou-se e apanhou uma bela algibeira, e de lá ele retirou ervas de reconhecido poder de cura, tão raros quanto não se vê a flor da nazzazi, e me ofereceu, e também um pequeno pote selado, e fez um sinal de "beber".

Eu titubeei, minha Senhora, por alguns segundos, mas não vi qualquer ameaça. Ele olhava para os homens com uma distinta compaixão, até que alguns homens se sentiram seguros de chegar perto, e buscaram as ervas, e o pote. Ele esteve em silêncio o tempo todo. Então, quando já usávamos as ervas nos feridos, ele me fez um sinal, e cavalgou até a árvore onde estavam os corpos dos nossos guerreiros. Alguns dos nossos homens se revoltaram, achando que ele ia lá escarnecer de nossa tragédia, mas não foi o que se seguiu. Ele circulou ao redor do lugar, inspecionando o solo, então voltou cavalgando até nós. Parou por um instante, com um semblante preocupado, olhou para mim e, como se lhe ocorrera um pensamento, me fez um sinal e cavalgou para longe. Naquele momento, minha Senhora, pude distinguir numa colina ao lado, oito outros elfos cavaleiros. Oito elfos em nLótis, Senhora! Eles se juntaram, e o que havia vindo até nós pareceu dar ordens, e eles rumaram para o sul, em alta velocidade."

A Rainha ordena que esse registro fique em posse do Senhor Granatur, que continua.

"As ervas foram providenciais, minha Senhora! Aqueles que sangravam, puderam ser restaurados, aqueles que mancavam puderam caminhar e aqueles que estavam amaldiçoados pelo medo puderam respirar suavemente. Algum tempo de descanso, e até o temor das bestas do pântano havia passado. Adequamos os cavalos para levar os mais feridos e seguimos de volta para a cidadela. Fomos em boa marcha, e até encontramos alguns outros soldados que estavam perdidos no pântano. Eles se admiraram da visão de elfos que tivemos, e vieram conosco, até aqui, minha Senhora.

Vinte e oito homens chegaram comigo. Dois ainda muito feridos, quatro ainda se restabelecendo e os demais estavam íntegros. Pelo menos do corpo. Nosso mau sucedido resultado será revertido, minha Senhora, mas por ora estamos sem condições adequadas. Peço que entenda, minha Senhora. Esse é meu relato."

No final daquele dia a Rainha Tulrissa enviou mensageiros para Lioteh, pedindo ajuda para o resgate. O relato de Granatur a deixou muito curiosa, e outros mensageiros foram para o norte, em posição que somente eles conheciam, com mensagem que somente eles portavam.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

A Queda de Aleotir e a Resistência de Mantétern

Por dois séculos a fortaleza de Aleotir, em Mantétern resistiu a inúmeras tentativas de invasão. Sua muralha alta e robusta representou a segurança que os anões desejavam em suas terras, e também para a sua capital. Homens e elfos elogiavam a gigantesca arquitetura daquele lugar, e sua força. Do alto de suas inúmeras torres as águias e os corvos faziam ninhos. Magias antigas de proteção estavam impregnadas naquelas rochas, e até o sopé da montanha de Húros exibiam inscrições divinas, tão antigas quanto o povo anão. Portões magníficos, com o melhor metal e até centenas de pedras preciosas engastadas, controlavam a passagem de viajantes, comerciantes, exércitos amigos e de reis e rainhas. Sua guarda era inigualável, com anões guerreiros e arqueiros exímios, além de centenas de outros soldados, que se apresentavam rapidamente em qualquer lugar da longa muralha. A fama desses soldados era ainda mais antiga do que a própria fortaleza, mantendo Mantétern longe de conflitos por mais de mil anos.

Mas essa intransponível barreira, que se estendia por toda extensão do estreito vale entre a cordilheira de Húros e a de Gnai Isha, de uma ponta a outra, viu sua queda com o Levante de Amul. As sagradas muralhas foram destruídas, arruinadas, por dragões nefastos e mortos-vivos em horda. As bestas invadiram o vale sagrado, trazendo morte e magia negra para terras acostumadas ao reino da paz. Esse exército horrendo chegou até mesmo à capital Mantétern, que em mais de dois mil anos, jamais vira um poder tão grande ameaçar seu povo. Encurralados na montanha, os anões resistiram, até a súbita retirada de Amul e seu exército. O rei anão já havia morrido, em batalha. Uma imensa dor abateu o povo. E quando, sem a ameaça do inimigo, os soldados voltaram para a fortaleza, seus corações se entristeceram. Tudo eram ruínas, e a magnífica Aleotir havia sido profanada. A única torre resistente em pé abrigava duas famílias, anã e humana, imersas em terror e medo. O relato deles forneceu todas as informações que os Povos Livres tiveram da Grande Investida contra Mantétern.

Longos períodos de invasões, medo, dor, morte e fúria sucederam após essa guerra. Sem a fortaleza o vale estava mais uma vez desprotegido, e centenas de bestas do continente oeste tentavam tomar as terras, e as cavernas. O povo de Mantétern mostrou resistência, e uma improvável aliança com forças de Més foi feita, trazendo um imenso alento em tempos tão difíceis. Sem um rei no poder, os anciões foram os líderes. Não havia tempo para reconstruir, mas somente para resistir. Dessa forma, quando Solari, Dra Revo e Lioteh chamaram, em nada os anões de Mantétern puderam ajudar, nenhum único anão guerreiro puderam enviar, pois já sofriam a sua própria tragédia. E quando chegaram as notícias de que Fradeh já havia destruído a capital Solari, em muito se entristeceu o povo anão. Eles viam tudo isso como maus presságios, mas até aquele fervoroso povo duvidou dos desígnios dos Deuses. Muitos desistiram da Fé, e rumavam, por dentro da cordilheira de Gnai Isha, para o norte gelado. Em Mantétern somente a resistência do digno e bravo povo anão.

sábado, 5 de maio de 2018

Na noite

A chuva não passava. Uma dúvida incomodava Carly. Em sua mente diversas incertezas, como sombras, a resposta não surgiria sem reflexão. Ela já estava olhando para aquela xícara com café por longos minutos, perdida em frases que não se completavam. “E se?”, era a pergunta que ela mais fazia para sua consciência, para sua memória. O frio a incomodava mais, e ela se aninhava em cima daquela poltrona marrom, suas mãos pálidas e sua pele fina. Ela esconde os pés embaixo do cobertor improvisado com o tecido da cortina. Longos nadas respondem suas incertezas. Ela observa ao seu redor, como se procurasse uma ponta solta do novelo de memórias traidoras, com a esperança de um gato atrás de seu brinquedo. Suspiros.

O café está frio. Nenhuma disposição para buscar mais. Além do mais, ela escutava vozes na cozinha, e se ilude com a ideia de que vão lembrar dela naquele isolamento. Seu maior conforto é o fato de estar aquecida. Sua maior desilusão é saber que não há ninguém na cozinha. Ela está longe de conceber algo real de fato com sua mente, e nem sua memória lhe ampara, lhe garante sanidade. Suas dúvidas parecem ser uma extensão da extenuante batalha que sua mente trava todos os dias. Mas ela acredita ter um discernimento do que é real, e do que não é. E, mesmo assim, isso não responde sua pergunta. Só posterga a resolução dela. E a chuva não passava, e isso só lhe garantia mais frio, e a busca de um ninho mais aquecido. O frio era a própria estranheza, a dúvida era o familiar.

Carly olha para o relógio na mesinha ao lado da poltrona. Pouco mais de uma hora e cinco minutos da madrugada. Esteve por muito tempo perdida, sem achar sentido para o seu ser, sem sua resposta. Uma sensação de vazio, habitual, preenche seu corpo. Forçosamente ela estica sua mão pálida para pegar a xícara. O gole do café nada esquenta, nada conforta. Ela suspira. Olha para o teto, e a oposição que a poltrona faz em relação a janela lhe impede de ver a chuva lá fora. “Mas a chuva está aqui dentro”, ela pensa. Mesmo assim, seu ninho não representa mais conforto, e já começa a ficar bem quente ali. Ela estica os pés, e toca o solo devagar. Não está frio. Ela então ergue o tecido da cortina acima da cabeça, e retira-o com o movimento de um toureiro que acabou de esquivar-se de um touro enfurecido. Para seu espanto, não está frio. Isso lhe deixa alerta. Não há vozes na cozinha. Não há o som da chuva lá fora. É noite, mas uma noite quente. A xícara sequer está lá, na mesinha. Será que aquilo tudo era um sonho? Aquela dúvida que havia lhe aprisionado por tanto tempo, aquele frio que lhe oprimiu, as vozes, eram tudo irreais?

Ela sentiu como se um impulso em seus pés. Virou-se para a poltrona. Não havia tecido da cortina. Somente a poltrona marrom aconchegante, com a clara evidência de uso. As formas do corpo, que lentamente iam sumindo, enquanto a espuma macia restabelecia seu formato. Ela estranhou tudo aquilo. Ela havia ficado muito tempo perdida, e mesmo naquele instante sua memória não lhe amparava. Só conseguiu distinguir o relógio na mesinha. Pouco mais de uma hora e sete minutos. Aquela confusão, sensação de coisa nenhuma com qualquer coisa. “Nossa, está tão tarde!”, foi a única coisa que lhe ocorrera. Então ela sai do escritório e se encaminha para o quarto, não sem antes ir até a cozinha e constatar que não há ninguém lá, sequer vozes. Ela olha ao redor, seu pensamento orbita por alguns segundos, daí sai dali. Caminha até o quarto. Abre e fecha a porta, e um sono repentino relaxa seu corpo. Ela olha para a janela, realmente não há mais chuva, mas uma garoa. Estica-se em cima da cama, cobre-se com seu cobertor. Abraça-o, num último resquício de dúvida, vira-se e fecha os olhos. Ela quer o sono. Ela dorme.

terça-feira, 27 de março de 2018

De Shara e Gortag

Quando Maenor completou 8 anos, Mokin contou os desafios que a avó dele, Shara, havia superado. Uma das histórias que Maenor mais gostava era essa.

"Gortag havia procurado Shara em Sépia, pedindo ajuda, ciente dos profundos conhecimentos dela. Ele havia tentado matar toda sua família num acesso de fúria, e por causa disso, seu pai enviou mercenários para o matar. Exilado no deserto de Banideshir, Gortag encontrou uma tribo nômade que viu nele a marca de um amaldiçoado. Com profundo remorso pelos seus erros, ele foi atrás de Shara.

Na casa de Shara havia um amuleto muito antigo, que ela dizia pertencer a um renomado clérigo ermitão, e que aquele item era muito poderoso. Ela diz a Gortag que ele usasse o amuleto por 40 dias, e ao fim desse período, voltasse até ela. Gortag pôs o amuleto, e sentiu um pequeno desconforto, seguido de uma sensação boa. E foi embora.

Quando os 40 dias se passaram, Gortag voltou até Shara, conforme ela havia lhe ordenado. Ela perguntou a ele se alguma vontade de praticar o mal ainda estava dentro dele. Gortag respondeu que nunca havia se sentido tão bem, e em paz. Então Shara pegou seu Aielon, purificou um pote com água e ofereceu a Gortag, pedindo que ele retirasse o amuleto.

No instante em que ele tomou um único gole da água, um aerialinita monstruoso surgiu como uma sombra atrás de Gortag, com chifres e espinhos por todo seu corpo, produzindo um som muito alto, lançando maldições. Shara rapidamente fez diversos sinais com as mãos, e invocou palavras mágicas desconhecidas, e o aerialinita estremeceu. Num estrondo maior ainda a besta se elevou, e toda a vila pôde vê-lo, e grandes nuvens maciças e escuras surgiram acima deles.

Por muitas horas eles permaneceram naquele embate. Magia e contra magia. O terror negro e cinza, contra um resplendor branco e amarelo. Shara realizava muitos sinais com as mãos, e por vezes procurava em seu daereon ingredientes e ali mesmo manipulava poções. Com seu Aielon ela irradiava luzes pulsantes, e as vezes essas magias acalmavam o povo da vila, que mesmo aterrorizado com o gigante aerialinita, só assistia ao embate.

Então, no avançado das horas, num dado momento a besta recebeu um grande golpe, e tombou. Shara estava exaurindo suas forças quando o gigante, abandonando o corpo de Gortag, materializou-se na frente dela. Elevou-se mais uma vez a besta, certa de sua vitória, em frente a sua idosa adversária. Num movimento brutal, ele golpeou Shara como quem esmaga uma formiga, mas tudo que se ouviu foi um estrondo, seguido de um tilintar. Shara havia elevado o amuleto em sua mão, que suportou o golpe, e se partiu em muitos pedaços.

Com um grito aterrorizador a besta se contorceu. Seu corpo se encheu de fissuras, que foram crescendo, e logo haviam rachaduras. O aerialinita estava se partindo, e sua agonia lhe fez tombar por completo. Shara, então, com um último movimento das mãos, erradicou em luz o odioso corpo da besta, restaurando o céu. Uma fina chuva fria caiu. E, abaixo de onde estava a besta, o corpo de Gortag se encontrava, com alguns ferimentos.

Restabelecidos em casas de cura, Shara e Gortag voltaram a se encontrar. Ele estava profundamente agradecido, e enormemente impressionado com o poder daquela mulher. Prometeu riqueza e fama, algo que ela sempre negava. Por fim, Gortag quis saber como ela, uma mulher idosa, havia resistido e derrotado, sozinha, um aerialinita. Ela só lhe explicou que havia preparado o amuleto como um receptáculo, daí então durante os 40 dias a Essência da besta havia ficado ligada ao amuleto. Mesmo assim ela precisava que a besta abandonasse o corpo de Gortag para destrui-la. O fato do gigante ter dado o golpe que quebrou o amuleto ela atribuiu a sorte.

Gortag então pôde voltar para sua família, curado de sua maldição. E a história de Shara foi contada por muitos povos, e seus feitos foram continuados por seu filho Mokin, em Sépia."

terça-feira, 13 de março de 2018

Naqueles dias

Charles franzia a testa, com seu óculos de leitura na ponta do nariz, cabeça erguida. Aquelas malditas letras, tão pequenas. Se não fosse sua atenção à leitura ele não perceberia que Ana estava esbravejando e esperneando na cama, mas ela realmente se esforçava para ser percebida. Ela se arma com um travesseiro, ele só olha por cima dos ombros. Ela ameaça. Ele dobra o papel, resignado, com um sorrisinho besta. Fica de pé, estica a coluna calmamente, enquanto ouve Ana incontrolável gritar xingamentos. Ele esboça falar algo, e isso a deixa com mais furor, mas sua cabeça pende, novamente resignado.

Aquele barulho conta-gotas do vazamento da pia do banheiro lhe chama atenção. Ele precisa divagar um pouco para escapar da fúria de Ana. Alguma coisa para ocupar seu dia de folga. Quando projeta seu corpo na direção da porta, um travesseiro acerta sua nuca. Ele fecha os olhos. Abre os olhos. Fecha os olhos, imagina ele mesmo consertando o vazamento. Onde estarão as ferramentas? Sem esboçar nenhuma reação à Ana, ele sai do quarto, sob protestos. Ele deixa a porta aberta, afim de ouvir aquele show escandaloso.


No banheiro ele para bem em frente a pia. Sua disposição é mínima. Finalmente aquela sensação de sair correndo diminui. Apesar dos gritos, ele apura os ouvidos, põe a mão embaixo da pia e com o tato identifica a origem do vazamento. Uma conexão que está frouxa. Ele firma os dedos e torce. Sua imaginação o remete às máquinas das fábricas onde ele estagiou quando jovem. Não haveria nenhuma máquina mais perfeita para realizar aquela atividade que ele executava tão bem: agachar-se em frente a uma pia, esticar o braço para trás dela, sentir a conexão frouxa e a água que por ali escorre, moderar a pressão dos dedos com o pulso virado para cima, e torcer com um torque preciso até estancar o vazamento.


Aquela sensação de felicidade durou alguns segundos. Ana estava de pé, em frente a porta do banheiro, calcinha e sutiã, e gesticulava muito, aos berros. Charles a observa, sentado no chão do banheiro. Ele admira o corpo dela por milésimos, logo em seguida voltando sua atenção pro chão, numa atitude passiva. Ela vai até a cama e volta, gesticula, faz diversas caretas, vai até a cama e volta, bufa diversas vezes. E Charles ali, sentado no chão, com o corpo inerte, como uma marionete sem o manipulador.


Num dado momento Ana para, e silencia. Ela mergulha seu olhar naquele homem franzino, sentado no chão do banheiro. Respira fundo algumas vezes. Não esboça um movimento. Uma sensação de medo toma conta de Charles. Ele pensa que ela pode reagir violentamente. Sente uma vontade de “se abrigar” dentro do box do banheiro, com toda sua covardia. Ele está acuado. Alguns segundos de expectativa. Ana finalmente se move. Ele percebe que ela está olhando para o espelho, uma feição triste lhe abate. Charles percebe que a ira se foi, mas não tem coragem de levantar, ou falar alguma coisa. Ela somente toca em seu rosto, marcado por grandes olheiras. Finalmente ela sai dali, e parece afundar na cama.


Charles levanta devagar, incrédulo. Apoia-se nas paredes, pernas bambas, um cansaço repentino. Toda aquela situação lhe cansava. Sua cabeça começa a doer, ele se sente incapacitado, esgotado, consumido, explorado. Dá uns passos e já está de frente a cama. Ana está lá, jogada, espalhada, igualmente cansada, choramingando. Ele pensa que o pior já passou, e se atreve a ajoelhar-se na cama. Ela não reage. Ele arruma os joelhos unidos e tomba na cama, exausto. Um estranho silêncio toma conta do quarto. É um sábado, e uma leve chuva adormece os dois. Paz.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eu não gosto de você!

Inflamável.

Essa única palavra escrita a mão com uma tinta vermelha, com um sombreado preto igualmente feito a mão, bem no meio da página. Há uma gravura de fogueira na altura do rodapé, um desenho bem rudimentar, como os que são encontrados nos lugares onde os homens das cavernas se abrigavam do frio e do perigo. Eu tenho a impressão de ter visto as letras se moverem, flamularem, por um breve momento. Uma única página com uma única palavra.


Lembro de quando abri o livro aleatoriamente e havia a palavra “volte” escrita em maiúsculas e em forma de rabiscos e rasgões. Aquilo me assustou de verdade. Era como se o livro estivesse me dado um comando, uma ordem expressa. Foi o que eu imaginei. Não sabia nada do que sei hoje. Esse simples mistério me deixou meses sem querer tocar no livro, sem vontade de ler novamente suas páginas misteriosas.


Se ao menos eu ainda pudesse ir naquele sebo maldito! Eu desconfio que aquele homem sabe mais do que aparenta, com aquele sorrisinho antipático e roupas de inglês em velório. Aquele lugar ainda me inspira curiosidade, assim como aquela praça, aquele banco de praça, aquelas velhas de cabelo branco. Acho que estou pensando demais no livro, nesse mistério todo. Talvez eu deva me concentrar nas entrelinhas. Acabar com essa neurose de que há um livro que se comunica comigo, e que tudo ao seu redor está envolto numa trama. Vou prosseguir a leitura.


Inflamável! - digo, em voz alta.


Num grande clarão surgem chamas em meu escritório! Labaredas amarelas e vermelhas, um calor infernal lambe meu rosto, eu me protejo com as mãos, solto o livro, que cai aos meus pés. Olho ao meu redor e todos os móveis e livros estão em chamas, e me sinto num turbilhão de fogo e caos. A madeira crepita, e faíscas voam com lufadas de vento que vem da janela. Minha escrivaninha me impede de pular, há ali chamas realmente muito altas e vermelhas. Eu tento gritar por Elza, mas o ar quente invade meus pulmões, e começo a tossir. Encosto minhas mãos na boca, e vejo meus dedos em carne viva, com a pele queimada. Minha carne fede a fumaça. Quanta agonia.


Eu olho para o livro e ele está lá, coberto de chamas que correm de suas páginas, como se ele estivesse regendo aquele inferno vermelho. Tento desesperadamente gritar por Elza, mas a imensa dor das queimaduras me impedem. Estou em chamas! Tento me virar para a porta, mas minhas pernas parecem estar soldadas ao chão crepitante. Eu tento gritar por Elza, e meu maxilar se desprende de meu crânio. Estou em chamas! Daí, num movimento involuntário eu me ajoelho em frente ao livro, e meus braços o alcançam. Esse livro maldito, vou jogá-lo pela janela! Eu o tomo nas mãos, e então a próxima página desliza sozinha para a esquerda.


Num farfalhar as labaredas se dissipam, tudo se restaura. A dor agora parece um gélido abraço de uma brisa que entra pela janela, aberta e voltada para o meu jardim. O livro está intacto, assim como meus braços e pernas, e minha roupa. Os insetos das bromélias sobrevoam meu rosto, e o cheiro do chá que Elza deixou para mim invade minhas narinas, e esqueço o fedor de carne queimada. Me assusto horrivelmente! Que magia negra é aquela? Largo o livro para longe, e ele cai, pesado, fechado como um cofre seguro. Minha sensação é de terror! O que foi aquela alucinação?
 

Eu tenho que me livrar desse livro maldito!

Cheers!

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Primeiro dia da Crise

Seth acorda John com um toque de alarme. Ele abre os olhos e aquele holograma está lá diante de seus olhos, exibindo a palavra “MENSAGEM” com letras vermelhas. “Bom dia senhor”, diz Seth, e John levanta da cama com o rosto ainda sonolento. “Relatório do dia...”, e Seth responde “Sem novas notícias, senhor”. “Relatório da fábrica”, e Seth responde “Relatórios inconsistentes ou em andamento. São 6 horas da manhã, senhor. Há uma mensagem urgente da Base”. John levanta o olhar, arruma o cabelo e diz “leia a mensagem para mim, Seth”.

Graves danos ao seu protótipo. Encaminhamos para você um DNA desconhecido encontrado na zona de testes para averiguação. Aguardamos sua análise e enviamos o vídeo do incidente. Não houve comprometimento dos testes. PeTYvR.

“Abrir vídeo da mensagem, Seth, por favor”. John vê um anDERIS em pedaços, e grandes crateras fumegantes. Ele aproxima a imagem, vê centenas de Modificados mortos, alguns triturados. O vídeo para e foca numa das crateras, onde se vê um DNA grande e estranho, e os cientistas juntos a peça. A camera se volta e foca em mais pedaços do anDERIS, visivelmente dilacerados, com centenas de pequenas peças espalhadas. “Algo destruiu meu protótipo”, ele pensa.

“Preparar o Lab 3, Seth. Envie especificações 2694 para a Base e solicite todos os relatórios da perícia do protótipo para mim. Não sei porque eles não enviaram o protótipo pra cá, então eu quero saber tudo sobre. Comunique-se com Lara e veja se ela pode colaborar. Ah, e não esqueça de deixar todos os módulos no laboratório para a análise desse DNA”, diz John, se encaminhando para o banheiro, semblante preocupado. “E ligue para o Marc”.

Quatro minutos de banho e um silêncio de Seth que perturba John. “Relatório, Seth”, diz John, curioso. “Preparando Lab 3. Especificações 2694 enviadas para a Base e as solicitações da perícia do protótipo enviadas. Módulos DNA preparados em sub-56. Lara e o telefone de Marc não respondem, senhor

John estranha essa última informação. Veste suas roupas, abre sua pasta, confere o conteúdo, fecha a pasta, põe seu NOPAC no pulso e desce as escadas, rumo ao elevador.