sexta-feira, 26 de maio de 2017

O Sábio no Exílio

O sábio passou seus primeiros anos de exílio numa comunidade pobre, junto a pessoas que lhe faziam dezenas de perguntas todos os dias. Ele experimentava, naquele lugar, a proximidade com a natureza, o privilégio de contemplação ociosa, a paz reconfortante. Ele não possuía pupilos, somente as muitas crianças que lhe acompanhavam durante suas longas caminhadas.

Um dia o governador lhe procurou. Um aparato muito grande garantia a segurança dele, e o sábio se desvencilhou de muitos constrangimentos a população propondo que essa reunião se desse em um lugar ermo. Ali ninguém poderia interromper a fala dos dois. O governador acatou a proposta, afim de consultar o sábio. E assim, por 3 dias, um perguntou e o outro respondeu.

Cheers!

terça-feira, 23 de maio de 2017

Rascunhando #1


Uma noite sem sono e as horas pareciam tão lentas, uma sensação ruim me tirou da cama, estou sonolento, mas alerta. Pela janela ouço o som dos carros passando na avenida movimentada lá embaixo, e o som dos gatos miando nos telhados dos comércios ao lado do edifício onde moro. Ligo a televisão por puro hábito, olhar pela janela se mostra mais interessante. Confiro as horas no relógio pendurado na parede, um daqueles itens que você vê lindo nas revistas de arquitetura, compra e depois se arrepende pelo preço tão alto por uma função tão banal. Já são 23:38 da madrugada, eu me estico em frente a janela e dou uma observada no que se passa. Tédio.

As ruas estão molhadas pela chuva que castigou a cidade durante a tarde toda, os carros passam e aquele chiado que os pneus produzem me faz lembrar de quando eu era mais novo e queria comprar um carro. Típico adolescente, querendo impressionar as pessoas erradas mas evitando as pessoas certas. Por pouco não guardo o dinheiro da faculdade. Hoje eu poderia ter um carro, mas sem diploma dificilmente teria um apartamento. Um sacrifício recompensado, penso eu. Os bares não me conheceram, as pilhas de livros eram meu travesseiro. Então observo um carro popular passando devagar, provavelmente velho e com defeitos. Penso se aquela pessoa dirigindo tem um diploma. Quem sabe?

domingo, 30 de abril de 2017

Computando Dados: Yor


Computando os dados. Yor estava sentada na calçada em frente a sua casa, vestindo aquele moletom velho e puído, um sorriso estranho no rosto que encarava quem passava. Ela esperava o entregador de jornal, ávida pelas notícias do plantão policial. Amava a tragédia e a imperfeição com que os crimes eram tão evidentemente elucidados pela polícia. Apesar disso ela tinha uma queda pelos bandidos, e muito frequente “torcia” para que algum criminoso em fuga não fosse capturado ou que um crime sem solução permanecesse sem solução. Ela guardava as matérias num fichário, a maioria com notas e até alguns desenhos, e as “mais interessantes” ficavam num arquivo de três gavetas, organizadas por data, jornal ou nome do criminoso. Ela nunca organizava por crime. Acreditava que crime é crime, tanto faz se é um sequestro ou um furto.

A mãe de Yor, Jezebel, acredita que sua filha será uma importante investigadora no futuro, e até apoia o hobby da filha. O pai de Yor é um contador de nome Zacarias. Nunca prestou atenção em como a filha gastava seu tempo livre, mas já estava até acostumado em ser o segundo a ler os jornais. Yor possui um irmão, Orven, quatro anos mais novo que ela, e seu principal ouvinte e companheiro.

Computando os dados. Yor estava na casa de sua amiga e vizinha Gir, falando de garotos, e folheando essas revistas adolescentes. Gir estava servindo de cupido, e havia convidado Leto, um rapaz da sua igreja, para sua casa. Yor havia pedido o encontro, que não poderia acontecer na sua casa por conta da pentelhice de Orven e, claro, porque não poderia ficar a sós com um rapaz em seu quarto. Tudo dependia dos pais de Gir chegarem no mesmo horário de sempre e não acabarem com o encontro. Yor estava sem calcinha e vestindo uma camisa de hóquei, e calculara cada segundo de seu encontro com Leto. As duas combinavam detalhes quando a campainha soou.

Um rapaz educado, de fala macia, com grandes olhos castanhos. Leto trouxe duas pizzas, provavelmente por não saber do encontro às escuras que Gir promoveu, e por achar que seria somente uma tarde de lanche e filme. Ficou um pouco desconfortável quando soube que os pais de Gir não estavam em casa, e mais ainda constrangido quando as duas o convidaram para subir para o quarto. Inventou uma pequena tosse e perguntou pelo banheiro. Lá dentro ele manda uma mensagem para um amigo: “ESTOU NUM QUARTO COM DUAS GAROTAS!! UMA DELAS FEZ QUESTÃO DE MOSTRAR QUE ESTÁ SEM CALCINHA!!! FODA NÃO TER TRAZIDO CAMISINHA!!! DEPOIS MANDO FOTOS”. A mensagem foi enviada e visualizada. Em segundos a resposta: “Para de bater punheta, porra! Quero foto nenhuma não!”.

Computando os dados. Yor está no shopping afim de comprar um edredom de presente para seu irmão. Os preços estão muito elevados. Na sua mente ela pensa “poderia roubar facilmente pela área de descarga de produtos”, mas daí ela lembra que em todo lugar existem câmeras de segurança. Isso a deixa aliviada porque ela se preocupa de não deixar esses pensamentos criminosos crescerem dentro dela. Mesmo assim ela tem uma sensação de que pensar assim é algo natural, e que ela não está sozinha. Então ela escolhe o edredom, leva até o caixa e efetua o pagamento, vendo ir embora boa parte de sua mesada. Nada mal, Orven merece.

Na festa do aniversário de Orven o bolo era no tema de um filme de ação onde homens falam com carros que se transformam em robôs. Gir e Leto vieram, e trouxeram presentes. Yor foi bem cerimonial com Leto e tratou de se isolar em seu quarto, em meio aos seus arquivos. Jezebel estava radiante num vestido amarelo e seu marido Zacarias era o pai mais desastrado da face da terra. O pobre pai havia quebrado a vidraça da janela pondo uma escada afim de colar os balões da festa, deixado o frango muito além do tempo no forno, deixando a casa com aquele odor de carne queimada e, sem querer, quebrado um dos presentes de Orven. Mesmo assim ele ria e contava piadas aleatórias para os convidados. No final da tarde todos foram embora e sobrara mais de dois terços do bolo, e muitos salgadinhos. Orven agradeceu.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Brainstorm #1

Solange  é  apaixonada  por  Maurício  desde  o  tempo  da  escola,  mas  nunca  teve  coragem  pra  tentar algo  com  o  rapaz.  Maurício  trabalha  como  técnico  de  informática  numa  loja  de  departamentos,  e completou  6  anos  lá  em  Outubro  passado.  A  loja  de  departamentos  se  chama  Incrível  e  está passando  por  uma  crise  financeira,  o  dono  já  está  pensando  em  fechar  algumas  filiais  no  estado. Todas  quartas  e  quintas  o  dono  da  Incrível  janta  no  restaurante  de  sua  ex  mulher,  sendo  essa  a maneira  que  ele  tem  de  estar  próximo  da  mãe  dos  seus  3  filhos.  Um  acidente  de  moto  vitimou  um desses  filhos  ano  passado,  e  hoje  ele  necessita  fazer  fisioterapia  para  restabelecer  os  movimentos das  pernas.  A  fisioterapeuta  dele  participa  de  um  grupo  de  oração  na  igreja  que  ela  frequenta  desde menina,  sempre  nas  segundas.  A  melhor  amiga  dela  está  estudando  Enfermagem  numa  conceituada universidade  da  cidade,  a  inspiração  parte  de  uma  história  da  família  onde  um  médico  salvou  a  vida de  sua  avó.  Em  1977  a  avó  dessa  menina  estava  em  um  cruzeiro,  e  ela  conheceu  as  Bahamas  com um  amigo  de  infância,  que  hoje  é  seu  marido.  Foi  nesse  mesmo  cruzeiro  que  João  foi  “concebido”, e  até  hoje  seus  pais  brincam  ao  dizer  que  ele  não  tem  país,  que  ele  é  internacional.  A  palavra “internacional”  é  citada  81  vezes  no  livro  “A  Crise  Humanitária  e  a  Revolução  dos  Imigrantes”,  do cientista  de  política  externa  Abdel  Sharaf.  Esse  livro  pôde  ser  visto  ao  lado  de  um  mendigo  que ficou  notório  numa  matéria  de  um  jornal  local  por  ter  formação  acadêmica  elevada  mas  que,  por ironia  do  destino,  foi  morar  numa  casa  de  papelão,  embaixo  de  um  viaduto.  Esse  viaduto  foi inaugurado  em  agosto  de  1986  pela  gestão  do  prefeito  Mendes  Mota  e  liga  a  avenida  Hilário  Viera Campos  com  a  rua  Doutor  Knust.  Gerald  Knust  foi  um  renomado  botânico  que  em  1956  liderou  um projeto  de  arborização  na  cidade,  além  de  ter  criado  o Jardim  Botânico  que  leva  seu nome.  Em  2010 foram  encontrados  os  corpos  de  três  moradores  de  rua  assassinados  dentro  das  dependências  do Jardim  Botânico,  crime  este  que,  meses  depois,  foi  descoberto  ter  sido  cometido  por  3  policiais militares  de  plantão.  A  filha  de  um  desses  policiais  sofreu  bullying  na  escola  quando  a  notícia  do envolvimento  de  seu  pai  no  crime  saiu  na  mídia.  A  escola  dela  tem  um  dos  melhores  índices  de aprovação  em  concursos  e  vestibulares  da  cidade.  O  almoxarifado  da  Secretaria  de  Educação  que divulga  esses  índices  foi  furtado  na  semana  passada,  e  nenhuma  câmera  de  segurança  detectou  o furto  de  dois  projetores,  três  notebooks,  sete  Hds  externos  e  quatro  tablets.  Os  notebooks  estavam ali  por  quase  um  ano  à  espera  de  manutenção  pois  a  empresa  responsável  contratada  pra  isso  havia sido  descoberta  em  falcatruas  e  tinha  sido  considerada  suspeita  de  concorrer  a  novas  licitações.  Um dos  sócios  dessa  empresa  possui  um  campo  de  golfe  num  bairro  da  periferia  da  cidade.  Por  doze vezes  em  menos  de  3 anos  esse  campo  de  golfe  sofreu  tentativa  de  invasão  por meio  de  movimentos dos  sem-terra.  Um  vereador  ligado  a  esses  movimentos  foi  considerado,  na  administração  passada, o  “mais  ausente”,  com  somente  45%  de  presença  nas  sessões  da  Câmara.  Em  setembro,  um  dos assessores  desse  vereador  foi  flagrado  enviando  os  convites  da  festa  do  seu  casamento  pelo  serviço postal  da  Câmara.  A  noiva  desse  assessor  tem  um  antigo  amante,  um  professor  de  matemática  de uma  cidade  da  região  metropolitana.  Em  2006  os  alunos  do  curso  de  Matemática  foram  barrados  no laboratório  de  informática no  campus  de  Humanas,  levando  a  um  protesto  que  resultou  em pancadaria,  vandalismo  e  algumas  apreensões.  Um  dos  professores  agredidos  no  protesto  foi atendido  no  hospital  Osmar  Serrano  pelo  médico  Júlio  Rizzo.  A  filha  do  médico  Júlio  ganhou  um concurso  de  calouros  em  sua  escola  cantando  uma  marchinha  de  carnaval  que  logo  viralizou  na internet.  O  zelador  da  escola  dela  possui  uma  extensa  coleção  de  uma  revista  masculina  famosa, mas  o  volume  já  está  tão  grande  que  já  ocupa  um  dos  quartos  de  sua  casa.  O  maior  patrocinador dessa  revista  é  uma  conhecida  marca  de  barbeadores  que,  devido  a  crise,  demitiu  mais  de  1500 funcionários  do  ano  passado  pra  cá.  Um  desses  funcionários  demitidos  é  o  pai  de  Solange,  aquela que  ama  Maurício, mas  não  tem  coragem  de  tentar.