domingo, 26 de junho de 2016

Onze meses

Minha namorada Margot tem uma ex namorada que hoje é gerente da loja onde minha ex namorada trabalha. Coincidência ou não, isso está nos afetando. A ex da minha namorada, Clarisse, faz todo possível pra encher o saco da minha ex, que acaba me ligando, chateando Margot. O objetivo de Clarisse é claro: ter Margot de volta.

Fevereiro. Meu plano é usar o Saymon, um ficante de minha prima Josy que se tornou meu amigo. O cara é um falastrão, metido a garanhão, e eu o sondei pra saber se ele me ajudava com Clarisse. Claro que daria uma grana a ele, nada muito caro, nem elaborado. Era só ele dar em cima da Clarisse, bem chato mesmo. Houve um tempo que ela curtia caras, e é nisso que eu aposto. Ele chega dizendo que lembra dela com algum cara, e que sempre foi muito afim dela. Plano perfeito.

Março. Margot saiu para o trabalho mais cedo. Eu fiquei, conspirando com Saymon pelo celular, o primeiro dia do plano contra Clarisse. Cheguei a pensar em avisar a minha ex, mas ela não ia concordar, afinal ela é funcionária da Clarisse. Descobri o horário do almoço do inimigo, avisei ao Saymon, e fui trabalhar. Eu queria ser uma abelha pra ver tudo aquilo acontecer! O constrangimento de Clarisse. Quero ver ela nem ter tempo pra pensar em Margot.

Na hora do almoço no meu trabalho eu ligo pro Saymon. Ele me fala que o plano deu parcialmente certo. Como assim? Ele me conta que Clarisse já o conhecia. E ele realmente lembrou dela. Eles foram parceiros em um curso pré-vestibular anos atrás. E eu com isso? Só quero ela longe da minha namorada. A parte boa é que ele a convidou pra um barzinho e ela topou. Vamos ver.

Abril. Josy pegou no pé de Saymon, quer namorar, e ficou desconfiada das constantes saídas dele. Pior que isso, ela jura que eu tenho algo a ver com isso. E eu tenho mesmo. Não poderia estar mais feliz. Saymon e Clarisse estão se vendo quase todos os dias. Barzinhos, happy hour no Centro, tudo bancado pelo papai aqui. A Margot está tranquila, distante disso. Meu plano está dando certo. Só tenho que achar o fim pra essa história. Meu dinheiro não pode ficar bancando tudo isso por tempo indeterminado.

Maio. Margot pediu um tempo no namoro, logo no dia que a gente ia fazer 2 anos juntos. Eu não sei o que pode estar acontecendo. Estávamos bem, a Clarisse havia sumido, minha ex também, era só eu e ela, e me acontece isso. O Saymon me confirma que Clarisse já está de olho em outra mulher. A Josy me conta que ela e Saymon estão muito bem, mas sei que ele vai trair sem pensar. Margot não me atende em determinados horários, evita chegar em casa cedo, os finais de semana agora são exclusivos para "dormir na casa da mamãe". Eu estou atônito!

Junho. Esse mundo está de ponta cabeça! Eu posso ser o cara mais atrasado do mundo, mas não entendo esse povo. Como pode? Margot e Marília estavam tendo um caso, e eu não percebi. Estive por tanto tempo achando que Saymon havia me livrado de Clarisse quando na verdade meu maior inimigo era a minha ex namorada. Como fui tão cego? Margot procurou Marília por ciúmes de mim, e acabaram se conhecendo melhor, e melhor ainda. Melhor até demais, pro meu gosto. Agora Margot busca Marília no trabalho, e eu sou motivo de piada de Clarisse que, de alguma forma, ficou sabendo do meu plano. Uma tragédia.

Julho. Margot quer voltar. Descobriu que "aquilo" não era o que ela queria pra sua vida. Dispensou Marília, que espalhou pra comunidade gay diversas fofocas maldosas. Daí ela viu Marília ficar com uma mulher "nojenta", e foi aquilo que a fez pensar na "cagada" que ela fez comigo. Então estava ali, pedindo perdão, querendo saber se a gente ainda tinha alguma chance. Eu tinha a faca e o queijo na mão. Podia humilhar, gritar, deixar toda a humilhação e ressentimento sair como um tigre e ataca-la. Mas aqueles olhos...

Dezembro. Eu e Margot esperamos uma menina. Quinto mês. O nome será Andrea.

Cheers!

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O encontro no parque

Aquele encontro marcado para meio dia, um trânsito dos diabos, e o chocolate derretia dentro da caixa devido ao calor. As buzinas soavam e lá ao longe dava pra distinguir o apito do agente de trânsito. Aqueles vendedores no meio dos carros, adesivos e mais adesivos, com mensagens bregas, o ócio involuntário dentro do carro. Esqueceu até a pressa.

Uma leve dor de cabeça, na têmpora esquerda. Arruma o terço pendurado no retrovisor, dá uma olhada no carro ao lado, pessoas igualmente irritadas. Um casal e uma criança. Um carro popular da cor verde escuro, com um amassado na lateral. Provavelmente iam passear, ele pensa. Aquela família queria sossego, mas estava ali, pagando o preço que uma grande cidade pede.

Pensou em sua namorada. Pressa! Esse sinal que não fica verde, pensou. Os bombons estão derretendo, e ele ainda não havia comprado o urso de pelúcia com a frase personalizada que ele havia encomendado no shopping. Angústia. Ela deve estar chegando lá, e cada minuto que passa ele imagina o rosto de ira dela. Diabo de cidade, engarrafamento em pleno sábado!

Sinal verde!

Os carros iam como se engatinhando, afunilando da avenida até o acesso ao shopping. A hora já havia passado. Meio dia e quarenta. Ele vai morrer se não chegar em vinte minutos. Está com aquela esperança tola por achar que vai entrar com o carro no shopping, arrumar uma vaga, descer do carro, seguir até a loja, o maldito urso já vai estar na prateleira e embrulhado segundo suas especificações, ele vai pagar pelo urso, sair da loja, entrar no carro, sair do shopping, dirigir por 6 quilômetros, estacionar o carro no parque, encontrar a namorada a tempo de "arrumar a surpresa" e, finalmente, dar os presentes logo que é pra ela não reclamar.

Uma hora e vinte e oito. Seu namoro acabou! Ele estava a um pouco mais de 3 quilômetros do parque, e o calor já havia feito ele suar a camisa branca inteira. Ele balança levemente a caixa de bombons, um barulho seco. O chocolate agora deve ser uma barra só, pensa ele. Mesmo assim ele dirige com cuidado, sem acelerar muito. Desejava ter saído mais cedo, mas o cachorro sujou o pátio de sua casa com tanto lixo, ele teve que limpar. Tinha planos de economizar no dinheiro do motel e levar a namorada pra sua casa. Prático.

Ele chega ao parque. Dá uma última verificada na caixa de bombons, arruma rapidamente o maldito urso, o cartão com sua mensagem de amor. Sai do carro, tranca o carro, liga e desliga e liga novamente o alarme, caminha sorrateiro e atento procurando aquela mulher de cabelos negros. Ele não sabe como ela está vestida. Muitas pessoas no parque naquele dia. Ele procura nos lugares mais vazios, ela pode ter ido pra lá, afim de privacidade. Nada. Procura embaixo das árvores, onde já estão outros casais. Nada. Na parte mais afastada após o laguinho, onde ficam os fumantes. Nada. Aquela angústia. Ela se foi. Tudo acabou! Ele falhou! Rodou e rodou o parque. Tristeza. Abatimento. O urso sorria dentro daquele embrulho transparente com corações. Ele vai até a beira do lago, respira fundo e liga pra ela.

- Me perdoa amor, cheguei só agora por causa do trânsito! O que eu posso fazer pra compensar esse atraso gigantesco? Me perdoa, meu amor? - diz ele, desesperado.

- Amor, estou no ônibus, não posso falar, posso ser assaltada. Estou indo ao parque ainda. Quem se atrasou fui eu! Me desculpa. Passei pelo mesmo engarrafamento que você. Me espera, tá? Te amo!

Ele fica atônito, e seus músculos relaxam. Põe o celular no bolso, dá uma olhada no urso, e sorri. Ele senta próximo do laguinho. Em sua frente está, feliz, a família de três pessoas do carro popular verde. Ele ri. Fica em paz.

Cheers!

De Loé-Yoru

Ghan amava Loé, e um dia Seron matou Ghan e fez de Loé uma escrava. Um mercador chamado Faroé passava pelas terras de Seron e encontrou Loé e se apaixonou por sua beleza. Faroé vendia para o líder da tribo, e resolveu pagar a ele pela liberdade de Loé. 

O líder ordenou a liberdade de Loé, mas Seron não obedeceu, e a acorrentou no fundo de uma caverna, com somente um vaso com grãos e um pote com água, despiu as roupas dela e as jogou num rio longe dali. Seron foi morto pelo líder, sem dizer onde havia acorrentado Loé. Faroé então passou a procurar por Loé por dias, até achar suas roupas no rio.

Achando que Loé havia morrido, Faroé desistiu das buscas e foi embora daquelas terras. No fundo da caverna, Loé já perdia as forças, e já havia desistido de gritar por socorro. Ela lembrava de Ghan, e de seu amor por ele, e de sua tribo. Sua tristeza foi silenciando cada vez mais seu coração, e sua esperança foi morrendo com ela.

Então, sem alimento e água, prestes a dar seu último suspiro, Loé viu uma luz crescente vir do fundo da caverna. Braços de luz levantaram sua cabeça, e ela sentiu um sopro de vida que a reanimou. A corrente se partiu com um estalo, e logo ela se via de pé.

Loé então perguntou - quem és? - mas os braços recolheram e sumiram, junto com a luz. Ela tremeu com o súbito frio que sentiu, e logo começou a escalar a caverna. Sua força voltara como nos dias mais felizes, e seu cabelo não estava sujo. Ela olhou para a saída da caverna e sorriu. A luz da lua banhou seu corpo nu.

Um ancião que colhia cogumelos encontrou Loé num caminho à beira de um morro, e a acolheu. Loé não falava nada, só sorria, e o ancião, após muito tentar saber sobre ela, deu-lhe um nome de Yoru, que era o nome de sua filha falecida. Alguns dias se passaram e Loé conviveu com o ancião, sorridente, ajudando na casa, como uma boa filha.

Mas um dia Loé parou de sorrir, e o ancião, que voltava da mata com uma pequena lebre para o jantar, viu pela primeira vez aquela bela mulher falar.

- Obrigado por tudo que fizeste a mim, ancião! Fui muito bem tratada enquanto estive com você aqui, e em honra de sua confiança e compaixão, adotarei o nome que me deste! Mas que infelicidade a minha não saber do vosso nome!

- Meu nome é Er-Danzu, o mais velho dos meus irmãos. E você não precisa me agradecer, eu vi você num sonho! E pouco antes de encontrá-la, uma mulher me apontou onde você estava, mas nada falou! Quando vi que você também não falava, segui meu sonho! Agora eu tenho Yoru de volta! - alegrou-se o ancião.

- Que mulher lhe apontou onde eu estava? - questionou Yoru.

- Uma mulher baixa, escura, de olhos estreitos, com uma vasta cabeleira até os joelhos, nua e envolta de limo, de onde brotavam pequenas flores, e alguns cogumelos, que eu procurava para fazer o chá que ia te curar, como no sonho. Nunca vi cogumelos como aqueles aqui nessas matas, mas aquele era sim o cogumelo que eu procurava. Para o chá, como no sonho. - disse o ancião.

Assim, com esse mistério a descobrir, Yoru despediu-se do ancião.

- Que os Imortais te protejam e te recebam nos Douros, Er-Danzu!

Mas o ancião lhe deu mais um mistério.

- Yoru, eu sei que você vai embora. Eu vi no sonho! Mas devo te dizer que seu coração está dividido. Seu amor por seu marido, ou vingar-se do homem que matou seu marido e te fez escrava. Assim como vi no sonho, te direi, escolha bem seu caminho. Muitos perigos estão lá fora para você. Descer ou subir, queimar ou mergulhar, amar ou vingar. Eu a quero bem, minha Yoru. Mas sei que vai ser tudo como no sonho. - falou o ancião, triste.

Assim Yoru foi embora da casa do ancião. Seu coração ainda estava relutante de qual caminho seguir. Voltar pra sua tribo, tão distante, ou vagar pelas terras ermas. Muitos planos e poucas certezas.

Assim começou a grande tragédia de Loé-Yoru, que viria se tornar a lenda mais famosa a se contar para assustar as crianças vários séculos depois. A história da mulher que foi dos Pósuos aos Douros, inspirando gerações de aventureiros de Solari.

terça-feira, 14 de junho de 2016

De G'jia e Annon

G'jia estava completando seu primeiro milênio em Tardessa e seu pai, Oong'dulu já pedia um neto. Após tanto tempo sua filha não havia se interessado por nenhum tardessiano, e seus longos vinte e oito mil anos assustavam, pois estava velho e cansado daquele mundo.

Um dia, diante as praias de Oulata, em Rúnu, G'jia passeava com seu secto real quando uma delas encontrou uma rocha de um amarelo brilhante. G'jia recebeu a rocha em suas mãos e logo uma euforia correu seu corpo, e suas pernas ficaram moles, seus lábios ficaram secos e sua pupila se dilatou. Ela sorriu. Seu secto achou que era algo ruim, e tentou tirar a rocha das mãos da princesa, mas ela se recusou, e correu para dentro do mar.

As águas do mar pareciam línguas de fogo, que não queimavam nem feriam, e G'jia percebeu que aquela sensação era muito boa, carnal, e vinha da rocha brilhante. Seu secto por vezes tentou dissuadir a princesa a sair do mar, mas ela estava num transe consciente, experimentando sensações que ela nunca havia sentido. O vento em seu cabelo lhe causava um furor, e seu corpo tremia. A espuma das ondas lhe faziam rir.

Então, como se estivesse saindo de um sonho, ela quietou e caminhou para fora do mar. O secto, alarmado, a seguiu, de longe, como ela logo ordenou. G'jia caminhou muitas milhas, e seu secto ainda preocupado, já havia mandado emissários avisar ao rei e aos guardas reais. Ela caminhou até uma encosta onde havia uma grande rocha, semelhante a uma cadeira. Subiu sem esforços e ali ela depositou a rocha, assentada na rocha.

Um grande ruído de trovão e uma língua de fogo e água subiram, e G'jia se viu envolta numa nuvem de vapor, mas sua pele não queimava nem feria. O secto e os guardas reais lá ao longe se assustaram, mas não conseguiam se aproximar por causa do grande calor. G'jia levantou-se e abriu os braços como se fosse abraçar alguém. Então, como um raio que partiu o céu, Annon'bi'emac surgiu em sua frente, com seu cabelo dourado radiante. Suas roupas eram azuis com desenhos de ondas, e calçava umas botas cheias de conchas. G'jia o abraçou, falou algo em seu ouvido, e então ele falou com ela.
Eu estava preso neste mundo
Sozinho e apagando
Com o coração partido e esperando
Que você viesse!
Então G'jia mais uma vez o abraçou, e falou a ele.
Eu vim, amado!
Mas eu me sentia igualmente sozinha e apagando
Com o coração vazio e esperando
Que você viesse!
Annon'bi'emac olhou para cima, e um outro raio partiu o céu num estrondo. De lá desceu uma coroa dourada, com uma safira engastada na frente e dois topázios imperiais acima das orelhas. Ele segurou a coroa e coroou G'jia, que sorria. Ele então falou a ela.
Nós estamos presos a esse mundo
Que não é destinado para nós!
Aceita ser minha Rainha
E serei um Rei para vós!
De longe, chegando em seu cavalo, o rei Oong'dulu assistiu sua filha ser coroada, e se espantou com tamanha magia. Seu coração se encheu de ira, mas percebeu que Annon'bi'emac era um do povo dos Mentarnaeu, descendentes diretos dos deuses.

G'jia aceitou ser Rainha, e logo sua vida se alongou muito mais que a de seu pai. Oong'dulu retirou-se do trono, e em menos de duzentos anos seu neto, Ágolos, nasceu. Pouco mais que cento e oitenta anos depois, uma neta, Hésife, nasceu. O velho rei se alegrou, e muitas celebrações aconteceram por séculos. O reino estava alegre, governado por um Deus e por uma Rainha.

Oong'dulu morreu com trinta e quatro mil anos, e ao redor de seu túmulo muitas árvores nasceram, dando origem à Floresta de Détilos, conta a lenda. Ágolos assumiu o trono do reino com sua irmã Hésife quando seus pais, que nunca mais envelheceram, ascenderam e foram para a morada dos Mentarnaeu.

Esta é a origem, segundo o povo branti, dos homens que povoaram Solari, tendo em seu maior exemplo Martim, o Senhor dos Homens, Pai dos Homens, Orador dos Homens, Defensor dos Homens Menores.

sábado, 11 de junho de 2016

É a vida!

Meu extremo mau gosto. As enrascadas que eu passo por causa do meu extremo mau gosto. Quantas vezes ficarei constrangido, ou até triste, por causa do meu extremo mau gosto. Se arrependimento matasse, eu estaria, nesse momento, numa UTI, ligado a aparelhos.

Aqueles olhares, aquelas pessoas cochichando enquanto eu passava, a vergonha que Denise teve ao me avisar que ali, naquele momento, eu era o centro das atenções, e das críticas. Eu era um pária que visitava um reino distante, o homem sem pudor no meio dos recatados. Aquela sensação na barriga, minhas pernas ficaram bambas. E o pior foi o rosto de Denise se contorcendo. Eu não era bem visto.

Tentei buscar a mão dela, mas ela evitou. Não me abandonou, mas evitou o contato físico. Era compreensível naquele momento, mas era justamente o que eu não queria: ficar sem o toque das mãos dela. Eu rapidamente encontrei dezenas de lugares onde fixar o olhar, como se fugindo dos olhares das pessoas, que agora quase cercavam o "casal estranho". Acho que vi duas ou três pessoas discretamente fotografando ou filmando com seus celulares aquela cena incrível e vergonhosa. Denise parecia muito abatida.

Lentamente caminhamos, ainda sem rumo, torpes pela extrema atenção que nos davam aquele povo. Eu tentei dizer algo, e antes que eu terminasse de balbuciar ela respondeu com um "aham", balançando a cabeça assertivamente. Eu percebi que Denise não conversaria comigo. Não ali. Então busquei com os olhos um lugar onde pudéssemos ficar sem aquelas pessoas nos olhando. Encontrei uma pastelaria. Fomos para lá.

Acho que o dono daquela pastelaria nunca havia vendido tantos pastéis em menos de 10 minutos. As pessoas nos acompanharam, parecíamos magnetos atraindo metal, e agora Denise estava realmente acuada. Eu pensei em reagir, gritar com aquelas pessoas, mas só a assustaria mais. Eu havia comprado um pastel pra mim, e outro pra ela, um refrigerante pra mim e um caldo de cana pra ela. Mas o pastel estava amargo com tantos olhares, tantos flashes. Então resolvi mudar tudo aquilo novamente.

Particularmente meu extremo mau gosto é fruto de anos de prática. Posso ser o último homem no mundo a ter tantas excentricidades, sou um raro espécime dos "bastardos", o evitável estranho. Mas Denise é uma bela mulher, com um belo sorriso e belas ideias. Temo o dia que eu a perder. Me encontraria, finalmente, no inferno de onde as pessoas acham que saí. E tudo deixaria de fazer sentido. Eu seria mesmo o estranho no ninho, finalmente.

Então, num belo dia, uma parada cardíaca me levou. E o mundo perdeu um pouco da sua estranheza. Estou numa cama de hospital a 6 anos, e escrevo isso com uma caneta especial em um tablet, pois tive um derrame em seguida, quando tentavam salvar minha vida. Não falo, minha paisagem é uma avenida em frente ao hospital, e, num dia longo, as fisioterapias me deixam cansado. A Denise me visitou umas sete vezes, mas já se vão quase 4 anos que ela não vem. Deve ter me esquecido. Ou tido uma parada cardíaca. É a vida!

Vou morrer sem ela. Finalmente.

Cheers!

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os mortos sofrem

Um copo de vinho pra cada. Um par de velas acesas. Música ambiente, volume baixo. Talheres e guardanapos. Uma faca suja de sangue. Carne nos pratos. Olhos nos pratos. Mãos nas mãos. Um inexplicável cheiro de lodo. Muito sangue, por todo o lugar. Um garfo enfiado na nuca dela, dois golpes de faca no pescoço dele. Um cartão decorado com anjos, manchado de sangue em cima da mesa, em frente ao copo de vinho dela. Algo escrito. Letra cursiva.

Não fui o marido que você merecia, nem o melhor provedor para as necessidades que você merecia. Não fui o melhor pai, nem o melhor ouvinte nos momentos de crise. Sou esse ser humano, cheio de defeitos. Defeitos que me fizeram perder você. E eu estive sozinho por tanto tempo.
Agora você me dá essa chance. Quer me ouvir. Se soubesse como foi bom ouvir sua voz no telefone, propondo esse jantar. Meu coração está feliz, e estou disposto a ouvir. Estou disposto a mudar. Por você, pelas crianças, pela nossa família.
Esse cartão eu deixo para você. Se está lendo até aqui é porque tudo nesse jantar ocorreu bem, e estamos bem. Aceite me ver mais vezes. Prometo me tornar o homem que você merece ter. Ainda amo você!

Hugo

Provavelmente um jantar de reconciliação. O nome dele é Hugo, e esta é a casa dela. Os cães mortos ali fora são delas, então. A cozinha revirada, ali houve luta corporal. Eles não foram mortos à mesa. Foram postos aqui. O sangue por todo lado não é deles. Mais alguém morreu aqui, mas onde está o corpo. Alguém morreu e ninguém percebeu. "Enquanto os vivos celebram, os mortos sofrem". Uma ideia errada. Talvez. A única ideia que pode explicar essas mortes. Talvez. Mas, na mesinha ao lado do sofá, uma pista. Um porta retrato. Ela e um homem, branco, baixo e de terno, e ela de vestido azul. Quem será?

Cheers!

segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Paciente

A coruja está observando a águia. Na noite sem lua esses olhos são o mau agouro dos viajantes, e nem os animais se atrevem a sair de suas tocas, de seus ninhos. A águia está tranquila. Ela sabe que é observada. E em noites seguidas essas duas caçadoras se esquivam, evitando olhares mais soturnos. E os animais estão tensos, medrosos.

O lobo observa a ovelha. Em dias de chuva não há proteção, nunca se sabe o momento de um ataque. O lobo se aproxima da cerca, fareja, mas volta para a floresta. Ele está cansado. quer desistir. As ovelhas percebem seu desânimo, e se distanciam mais. O sol está nascendo no leste.

Cheers!

sábado, 9 de abril de 2016

"You must trust in me"

Encontraram o corpo da jovem no vigésimo sétimo dia após seu sequestro. Disseram que havia, ao lado do corpo, uma placa de carro roubado a um ano atrás, que continha a inscrição "BuG do milenio", gravada grosseiramente na parte de trás da placa. Na vítima só havia um corte no ombro.

Os investigadores logo associaram a inscrição a um outro assassinato de um rapaz, em Maio. Neste caso a placa de carro roubado continha uma inscrição com uma grafia diferente de duas maneiras: a letra era cursiva e o texto era "Bug do mileNio". Era uma pista, mas algo que o assassino havia deixado de propósito. Era de se desconfiar.

Realmente "Bug do Milênio" foi um problema da informática que causou preocupação mundial, com consequências reais, mas isso não nos levava a entender qual a mensagem que o assassino queria deixar. Uns teóricos achavam que aquilo era aleatório, mas meus amigos não compartilhavam dessa opinião.

Agora em Outubro surgiu mais um corpo. Uma jovem que trabalhava numa lanchonete. Um modus operandi diferente, mas a placa estava lá, agora com a inscrição "bug do milenio" gravada grosseiramente. O corpo estava semi mutilado nos cotovelos e nos joelhos, e todos os dedos das mãos e dos pés foram retirados, e não encontrados. Os investigadores já acham que é outro assassino querendo simular os "métodos" do primeiro. Provavelmente um amador.

Quase dois anos se passaram e nenhuma pista do assAssino de AliCe.

Cheers!

sábado, 2 de abril de 2016

Rir da fatalidade

Foi divertido chegar naquele lugar úmido e abandonado e ver todos aqueles moleques dançando pelados ao redor de uma fogueira, como se fossem nativos entrando em conexão com a natureza, vocalizando cânticos e palavras ininteligíveis, levando as mãos ao alto como se evocassem deuses ancestrais. Foi realmente divertido ver aquela cena. Um bando de drogados sacaneados por alucinações de uma droga avassaladora. Marionetes infames.

Slash é o nome de uma nova droga. Promovia sensações das mais variadas, alucinógenas e psicodélicas, e a grande maioria das pessoas que experimentavam, se tornavam rapidamente submissos, melhor dizer viciados, a essas sensações. Ouvi relatos de pessoas que experimentavam, inclusive, dependendo da dosagem, a privação de algum sentido, algo que eu jamais ouvi falar por outras drogas. Pessoas que ficavam dias sob efeito da droga, com suas mentes ocupadas, completamente distantes da realidade ao seu redor. Era triste.

Essa droga era vendida nos mais diversos ambientes. Ricos e pobres, nem classe nem gênero, a droga estava dominando o mundo numa escalada jamais vista. O mundo, de repente, se viu tomado por zumbis viciados em Slash. Os governos não estavam preparados, e em poucas semanas após os primeiros registros do uso dessa droga, logo surgiram pesquisas mostrando a sua rápida ascensão, sua distribuição fácil e quase imperceptível. Slash é vendida em ampolas de poucos centímetros, um líquido transparente ou levemente amarelado. Cerca de 5ml da droga era o suficiente pra um dia inteiro de "barato". E o que dizer do preço? Você compra facilmente pelo mesmo preço de um fast food médio!

Mas o que incomoda mesmo os governos e orgãos de saúde pública é a facilidade de produzir o Slash. Obtido a partir de um processo químico cuja matéria prima são um tipo de cogumelo, uma raiz e uma casca de árvore, mesmo alguém com poucos recursos, mas com a matéria prima na quantidade certa, duas panelas, um coador, um fogão e um prato, pode produzir bastante droga, mesmo que numa pureza duvidosa. Já os grandes traficantes, que se viram "perdendo mercado", migraram rapidamente, e produzem drogas com maior pureza e, claro, as ampolas, que saem num ritmo industrial. A última grande apreensão de Slash se deu na Austrália: 220 litros da droga!

É por isso que eu ri quando fui buscar meu sobrinho, no meio do mato, sujo e dançando ao redor de uma fogueira. Ri da fatalidade. Eu ri do caos. Eu ri do sistema. Ele não é uma vítima. Ele só se perdeu da mãe num shopping, uma semana atrás, e só hoje eu descobri onde ele estava. Um garoto de 12 anos, que provavelmente nunca havia experimentado nenhuma droga. Um garoto de 12 anos, pelado, vocalizando como um animal pré-histórico, ao redor de uma fogueira. Eu preciso rir disso. Logo o efeito passa, e ele vai querer mais. Ele vai desejar se perder de sua mãe no shopping outras vezes. E eu vou rir todas as vezes que isso acontecer.

Cheers!

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Carta de um cão

Quando nossos olhos se enchem de lágrimas, o coração fica entristecido, e o caminho se torna difícil, encontramos a paixão. O suspiro e o sussurro, a lascívia e o ciúme, sentimentos opostos em rota de colisão. Sua mente não funciona, e você ignora os chamados da razão. A paixão te devora, te deixa completamente exposto e o tempo urge. O outro é perfeito. O outro é o ser perfeito, e você está simplesmente apaixonado.

Além da paixão, não sei nada do amor.

Cheers!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Welcome, Rookie!

Abro os olhos.

Uma cama repleta de sujeira, um calor inexplicavelmente acolhedor. Meu corpo está entorpecido, a cabeça pesa, meus olhos ardem, meus lábios estão secos. Eu vejo em minha frente um par de cortinas escuras, parecem sujas. Aquele lugar fede muito a vômito. Eu tento levantar, sem forças. Apesar disso minha respiração é calma. Dor de cabeça, como se algo estivesse pressionando minhas têmporas.

Reunindo o melhor de minhas forças, consigo levantar e sentar na cama. Os braços tremem, ao esforço de se manterem apoiando o corpo. Olho ao meu redor e tudo que vejo é um lugar muito sujo. Pouca luz entra por trás das cortinas, que agora confirmo estarem sujas de vômito, e aqueles pedaços de comida. Muitas latas de cerveja, muitas garrafas de bebidas variadas, um violão aos pedaços, maços de cigarro amassados e centenas de bitucas de cigarros ao chão. Minha cabeça pesa. Começo a distinguir mais coisas naquela escuridão.

Eu não sei que lugar é aquele. Minha mente parece estar muito fragmentada, e isso me impede de lembrar como eu cheguei até lá. Aparentemente eu estou só naquele caos, mas não me surpreenderia ver alguem sair do meio daquela sujeira e montes de roupas jogadas ao chão. Eu realmente devo ter feito muita besteira. Melhor verificar novamente minhas condições. Eu conto: dois braços, duas pernas, uma cabeça. Não perdi nenhum dos dedos. Levanto minha cueca, e uma camisinha ainda cobre meu pênis encolhido, e ainda há esperma lá dentro. Ao menos eu me preveni, penso. A boca está muito seca, e isso me move a sair dali. Procuro o chão com os pés, que agora formigam. Estou tonto. Mas devo tentar me levantar.

Mal sustento meu corpo nas pernas. Estou muito fraco, ou cansado. Uma sensação de enjoo surge, e sinto aquela queimação no estômago. O mundo gira. Meus pés estão molhados, o chão todo está úmido. Latas amassadas, muitas latas amassadas. Tento dar o primeiro passo, mas meus pés latejam, e eu caio na cama novamente. O torpor toma conta de mim. Cada fibra de meus músculos estão pesados, uma energia me puxa pra baixo. Sensação estranha. O mundo dá muito mais voltas, tudo parece girar. Um pequeno estalo em meus ouvidos, um repentino cheiro de perfume e piscar é algo doloroso. Estou bêbado, a ressaca é horrível.

Então a porta do quarto se abre! A luz que vem daquele corredor branco dói em meus olhos. Uma mulher ruiva, vestindo uma lingerie preta, entra e atrás dela os paramédicos. Ela olha pra mim, estou deitado de lado na cama, pesado, mas o socorro não é para mim. Debaixo daquele monte de roupa, largado e nu, há um homem. Eu já suspeitava. O estalo em meus ouvidos deixou os sons abafados, mas percebo que eles estão verificando os sinais vitais do homem. A mulher chora, com as mãos na boca. Consigo distinguir umas tatuagens pelo corpo dela, desenhos tribais, desenhos orientais, letras ilegíveis nesse momento. Os paramédicos começam uma massagem cardíaca, aplicam um acesso no braço do homem, e injetam algum medicamento. Um terceiro chega, com aquelas pranchas. O homem é levado às pressas para fora, a mulher se vai. Um dos paramédicos me percebe. Ele vem até mim e abre meus olhos com seus polegares. Fala algo abafado, sinalizando afirmativamente com a cabeça. E sai.

Eu só consigo tentar dizer algo, seco: água, por favor!

Cheers!

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

São Lázaro

O sabor do vento que vem do mato me lembra a infância. Uma lembrança rica, sentida com detalhes, sorrisos. Velhos em suas cadeiras de balanço, asfalto rabiscado com gizes ou mesmo com o tijolo quebrado, em cacos. Desenhos infantis. Aquele cheiro de pão nas padarias, aquelas senhoras em fila, aguardando para as compras, com sacolas cheias de verduras e legumes e frutas. Um cheiro de pipoca.

As ruas são ladeiras, as ladeiras são montanhas. Eu me canso. Eu me liberto. Vivo o sonho, humano e belo. Corro e pulo, não sigo reto. Brincadeiras de rua. Como me liberto! Pontes e becos, ruas estreitas. Bares cheios de cadeiras vazias e homens na calçada. O futebol no campinho, a bola furada, remendada.

Nova infância sem passado!

Cheers!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Full Moon

Levanta a sua cabeça em direção ao horizonte, assista o sol despontando, iluminando as folhas da amoreira, aquecendo o ar, evaporando o orvalho que cobria todo o gramado. Deixe sua mente quieta por enquanto, com somente o vento a te perturbar. Feche os olhos e lembre das coisas que te faziam sorrir. Sorria com as coisas que te faziam feliz.

Embora tarde, os pensamentos não tem tempo, nem lugar. Afastando sua mente dos maus, é mais fácil perceber o mundo ao teu redor. E então estarás mais próximo das boas energias, e te sentirás mais próximo de estar completo. E dirás somente daquilo que sabes. Serás feliz.

A dicotomia de hoje em dia pode te dividir, e você tende a se dividir, e não acharás nada mais natural do que viver nessa divisão. Dia e noite, céu e inferno, rico e pobre, são apenas opções. Sua mente está pronta para as opções, mas mesmo assim vais ter essa curta visão da vida: ser ou não ser. Então seja muito! Seja vários! Seja algo que você não foi ainda!

Só não deixe de ser...

Cheers!

A Miríade de Sentimentos

Dos seus olhos eu não enxergo a verdade. Pequenos sinais de boa vontade, de seu compromisso, do destino. Não há verdade nos teus olhos. Não há verdades em tua boca, esquecida. Eu não confio em você, imunda!

És o meu melhor presente. Não consigo mais pensar na minha vida sem você, e todo esse carinho está estampado no meu rosto pela manhã, ao te ver deitada, tão linda! E o cheiro do teu cabelo! Há um motivo pra que eu seja tão feliz pela manhã que não seja o cheiro de teu cabelo?

Não te perdoarei! Suas palavras são vazias e tuas ideias são malignas. Eu nunca vi tanto egoísmo, nesses dias negros, de tão pouca esperança. E sei que existe uma razão pra que você ainda estar aqui, ao meu lado, contando mentiras desesperadas. Mas eu não sou estúpido! E não vou te perdoar.

Agradeço aos céus o dia em que você surgiu em minha vida, naquele lugar empoeirado onde trabalhávamos. Seus olhos eram a coisa mais linda e eu logo me apaixonei. O jeito como você arrumava o cabelo, a sua voz macia, e as coisas engraçadas que dizias. Você era um anjo, e eu te admirei por dias, meses. Ser teu amigo foi algo natural, e se tornar teu homem, destino.

Da dor nascem jardins. Do ódio nascem nuvens de chuva. Abençoado o abacate, por ser verde. E uma miríade de velhos sentimentos sacodem o ser por dentro. E chamam de loucura. E chamam paixão.

Cheers!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Homens se entendem

Bela necessitava de um voluntário para ajudar a levar as caixas para o andar de baixo. Eram caixas não muito pesadas, ela necessitava de um mais forte. Olhou cada um dos moleques e sorriu. Escolheu Alessandro e Felipe. Deu as ordens, liberou os demais, e foi fazer o lanche da tarde da molecada. Suco e alguma coisa doce, pensava ela.

Aquela tarde havia sido a mais quente daquele ano. Preocupada com o calor, solicitou que os moleques entrassem. Mário era aquele que sempre reclamava. E ela nem sabia qual era o parentesco dele com João, então suportava o menino reclamão. Ofereceu a tevê, negado. Ofereceu o quarto de hóspedes com alguns brinquedos (quebrados) do João, negado. Ofereceu um filme, indecisão. Ela tinha que dar algo pra compensar. Não sabia o que fazer. Então João chega.

Bela passou o restinho da tarde sossegada, lendo uns livros na varanda.

Cheers!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Reverse Psychedelic Anesthesia VII

Ao redor da fogueira, o frio.

Sete séculos se passaram e a floresta está adormecida. Estranhos bichos negros agora espreitam, e nenhuma música é ouvida desde quando os senhores da floresta adormeceram, traídos pelo regozijo de muitas eras de Luz e Alegria. Seus espíritos simplesmente exasperaram, e os ares se tornaram carregados de suas essencias, e então seus corpos ficaram solitários, e foram tragados pelas raízes das árvores e fungos. E eu não ouso caminhar num cenário desses. Senti saudade dos animais oradores das melhores histórias Deste Lado do Mundo. Senti saudade dos seres luminosos que, dentre muitos poderes, mitigavam as dores dos imigrantes das montanhas.

Desconheço esse frio cortante. Sinto medo, dezenas de olhos oblíquos, pequenas chamas acinzentadas, me observando. Procuro pelo círculo da fogueira, não está lá. Procuro pelos lampiões, e não estão mais lá. É revoltante sentir esse medo, e decido fazer algo, restabelecer as energias. Busco em minha mente alguma das canções transcendentais. Então eu canto, e ao fazer isso toda a Floresta treme, e um calor súbito arde em meus pés. Em um segundo um grande Urso surge, e ele está frio, e sujo, e magro.

O livro todo treme. Começa a chover.

Cheers!

Cinza e Marrom

Doces notas, o caminho até a rede, ócio e pensamento longe. Sem vento, calor e sono. As formigas carregam o fruto de seu trabalho, latidos e miados. A tarde se aproxima, mais calor e pouco vento. Almoço.

Apaixonar-se pelo olhar da cadela, tão carinhosa, fitando meus movimentos. Palavras gentis, afagos e afagos. Vento e cheiro de carne assada. Cheiro de perfume barato. Calor agoniante.

Breve descanso.

Cheers!

sábado, 9 de janeiro de 2016

Requiem à uma amizade

Aquela discussão dentro do táxi. Todo aquele ódio, aquela ira. João rugia, e Bela tentava de todas as formas o acalmar. O taxista corria, afim de se livrar do casal barulhento. Já havia testemunhado muitas discussões, mas nada tão raivoso. As curvas bruscas, o cheiro de cigarro na mão esquerda de Bela, o hálito de bebida e a saliva que saltavam da boca de João, tudo aquilo parecia urgente ao pobre taxista. Um homem de 55 anos, doze de profissão.

O bar era decorado com um bom gosto que Bela logo se sentiu à vontade. Aquela iluminação vermelho sangue dava exatamente o clima romântico que ela tanto ansiava. Mas João não deu a menor atenção à decoração. Estava ansioso pelo reencontro com seu amigo Eduardo. Quase sete anos sem se encontrar, tomar uns goles, falar das conquistas, e das perdas. João sentia o tempo passar como se um minuto durassem horas. Então seu amigo chegou.

Bela havia aprontado uma janta um tanto quanto comum pra um dia tão importante. Cinco anos de um relacionamento livre de rotinas, intenso e apaixonado com João. Ela queria fazer uma pequena surpresa. Vestiu por baixo da roupa comum uma lingerie de renda, escolhida uma semana antes. Passou o dia deixando a casa limpa e cheirosa. Ligou para suas amigas, e irmãs; queria evitar visitantes inesperados. E esperou João chegar da editora. Ansiedade, mãos inquietas. E então ele chegou, sorridente. E antes que ela pudesse iniciar toda a sua surpresa, uma notícia. Eduardo, um antigo amigo de João, estava de passagem pela cidade, e queria um encontro. Daqui a poucas horas. Pouco tempo pra se arrumar.

Eduardo havia mudado muito, pensava João. Aquele amigo boa praça, companheiro, inteligente e educado havia se transformado em um homem rude, machista, cafajeste e muito mal educado. Insistia em chamar João somente pelo apelido jocoso da adolescência. Reclamou da bebida e do tira gosto. Falava mal da esposa, da sogra, dos cunhados e da própria mãe. Xingou seu chefe tantas vezes que chamou a atenção das mesas ao redor. Bela estava extremamente constrangida. João tentava, desesperadamente, manter a calma, e constantemente mudava o rumo dos assuntos, mas Eduardo era mesmo muito bom em estragar qualquer que fosse o tema. Num único momento não-tão-grotesco de Eduardo, João recebeu um elogio pelas cartas e e-mails ao longo dos anos, o que havia mantido a amizade. Então João acalmou-se. Finalmente aquele cara rude voltava a ser seu educado amigo da adolescência. Para garantir que aquele começo seria esquecido, João desculpou-se e informou que ia até o banheiro.

Eduardo, descaradamente, chamou Bela de gostosa. Ela ficou chocada. Ele insistiu. Ela recuou. Ele jurava que já acompanhava cada foto dela das redes sociais. Ela estava horrorizada! Jogou todo o conteúdo de seu dry martini no rosto de Eduardo, aquele cafajeste. Eduardo então levantou-se, ameaçando um tapa. João chegou. Cadeiras e mesas derrubadas. Socos trocados. Muitos xingamentos. Ódio. Desgraça. Choro. Ameaças. Caos. Uma despesa ao restaurante que somente João e Bela iam pagar. Eduardo covardemente havia fugido. Tudo pago. João em ódio profundo, e sua esposa tentando palavras de mansidão. Ela chama um táxi. Discussão.

Obrigado, Pedro Valls, por anos de sua atenção e dedicação a este blog. Uma pequena homenagem, nada próximo do que você realmente merecia. Homenagem que posso estender às minhas divas Flora e Laura Valls. Vocês são dos melhores motivos deste blog ainda existir.

Cheers!