quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Mostruário Urbano I

Em sua pressa ele não percebeu a linda paisagem que passava, rápida, pela janela de seu carro. Não percebeu aquele lindo sol saindo por detrás de nuvens que pareciam um rio que flutuava. Não percebeu os pássaros que cantavam, ainda ao lado de seus ninhos, uma sinfonia maravilhosa. Não percebeu os tons de amarelo e vermelho na copa das árvores. Ele não percebeu o pedinte vindo em direção à sua janela no momento em que o semáforo lhe mostrou o sinal verde. Ele só seguia, automático. Ele só repetia o dia anterior.

Um happy hour com pessoas que ele nunca teve certeza se conhecia, amigos de seus amigos. Novamente aquele bar que ele considerava caro e de péssimo atendimento. Aquele constrangimento de sempre na hora de pagar, existem dívidas maiores que a dele na mesa. A volta pra casa.

Em sua pressa ele não percebeu que sua esposa estava bastante gripada, precisando de cuidados. Não percebeu que ele deu um anti-inflamatório a ela. Não percebeu que seu filho mais velho não dormiu em casa esses dois últimos dias. Não percebeu que não há uma gota dágua disponível para o seu cão, que ainda assim festeja seu raro afago. Não percebeu o arranhão na porta traseira direita de seu carro, fruto de um flanelinha insatisfeito da frente do bar. Não percebeu que o mesmo CD toca a dois meses em seu carro assim que ele o liga. Não percebeu o "bom dia" de um vizinho que ele só conhece de vista, na saída do estacionamento do condomínio.

Este homem tem uma vida trágica. Ele é cego pelo moderno, surdo pelo pandemônio urbano, insensível pelo que lhe é mais cômodo. Nunca saberá o gosto de uma framboesa colhida com as mãos. Nunca saberá como é bom comer as frutas de uma árvore que ele mesmo, anos atrás, plantou com seu filho. E isso é trágico. Seu futuro é trágico. E o de seu filho.

Trágico!
Cheers!

Um comentário:

Pedro Valls disse...

Mentes presas nos concretos e nos asfaltos. Quando nos deparamos com o rural, com o verde, com o silêncio, percebemos que a vida pode ser mais simples que a gente imaginava.
Um cachimbo a ser aceso, o som das árvores se mexendo, a vista infinita dos arbustos que estão na frente. Estes teus escritos me retornam a vontade de escrever, assim do jeito como ando escrevendo nesse exato momento. Tu e o Stephen King, quando leio a ambos, me dá vontade de sair escrevendo e não parar mais.